sexta-feira, janeiro 04, 2013

"Os Miseráveis": um tele-musical

É bem verdade que o cartaz do filme Os Miseráveis aposta em recordar a iconografia que, há várias décadas, em palcos de todo o mundo, sustenta o musical de Claude-Michel Schönberg e Alain Boublil: em todo o caso, tal não basta para que a versão cinematográfica, dirigida por Tom Hooper, consiga mais do que uma "ilustração" medíocre — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 Janeiro), com o título 'Que fazer com a matéria musical?'.

Tom Hooper é um homem bem intencionado a que as circunstâncias emprestaram um perfil inadequado ao seu talento de rotineiro realizador de televisão. Ele não tem culpa, mas a consagração nos Oscars de O Discurso do Rei (2010), não mais que um simpático telefilme (igual a dezenas que os ingleses produzem todos os anos), ficou como um daqueles percalços que a Academia de Hollywood parece fazer questão em incluir na sua história: Hooper foi mesmo distinguido como melhor realizador, em confronto, por exemplo, com David Fincher (A Rede Social), pormenor involuntariamente burlesco que só pode ser entendido como uma anedota mal contada.
Com Os Miseráveis, decididamente, Hooper não sabe o que fazer. Ou melhor, começa por ter uma ideia simples e meritória – gravar o som dos actores/cantores em directo, recusando o tradicional “playback” dos musicais –, acabando por esbanjá-la num aparato formalista como há muito se não via. Na maioria das situações (a canção de Anne Hathaway filmada num longo plano fixo é a excepção que confirma a regra), vai decompondo o esforço dos intérpretes numa montagem de histérica fragmentação, profundamente arbitrária, que serviria, talvez, para sustentar um vulgar “clip” de 60 segundos na MTV. Além disso, insiste em combinar o que é incompatível: o artifício do musical e um realismo simplista que confunde a acumulação de lama e sangue com uma automática produção de “contexto”.
Há opções desastrosas, a começar pelo casting de Russell Crowe na personagem de Javert, a ponto de sentirmos, cena a cena, que o actor está apenas à procura de uma identidade que, em boa verdade, nunca encontrou. Mas há, acima de tudo, essa noção banalmente televisiva segundo a qual a aplicação de muitas câmaras e a “velocidade” das imagens faz... espectáculo! Um elefante numa loja de cristais, eis a questão.