segunda-feira, dezembro 31, 2012

Novas aventuras de Tom Cruise

Subitamente, um herói que parte de um modelo convencional, ao mesmo tempo que actua para além das regras mais previsíveis: Tom Cruise está de volta assumindo a personagem de Jack Reacher — estes textos foram publicados no Diário de Notícias (27 Dezembro), com os títulos, respectivamente, 'Retrato de um herói que pensa' e 'Tom Cruise regressa aos "filmes de acção"'.

Numa cena de Jack Reacher, o investigador e a advogada de defesa do suspeito, respectivamente Tom Cruise e Rosamund Pike, analisam a complexidade do caso que enfrentam. É um momento tradicional: trata-se de fazer um ponto da situação que ajude o próprio espectador a organizar ideias, intensificando o subtexto romântico que já começou a funcionar (Cruise e Pike são, aliás, impecáveis na subtil exploração desse subtexto). Cliché mil vezes repetido, favorecido pela intimidade da situação: uma personagem diz à outra que pegue numa peça de roupa e se cubra. Acontece que, desta vez, é Cruise que está em tronco nu. Mais do que isso: ele aproxima-se dela; ela estende a mão, aparentemente para o tocar; ele deixa cair qualquer coisa na mão dela. O quê? As chaves do carro para ela se ir embora...
São momentos de calculada ironia que resumem a lógica deste cinema de segundo grau, demasiado consciente das suas próprias heranças e, por isso mesmo, disponível para reconverter as regras mais clássicas do seu imenso património. Em boa verdade, são momentos que podem simbolizar todo um vasto e diversificado processo de revisitação do classicismo de Hollywood, iniciado pela geração de cineastas como Arthur Penn, Alan J. Pakula e Sydney Pollack (Cruise, recorde-se, ainda trabalhou sob a direcção de Pollack, em A Firma, de 1993).
Há, assim, uma desconcertante estranheza na realização de Christopher McQuarrie (também responsável pela adaptação do romance de Lee Child em que o filme se baseia). Porque Reacher/Cruise parece ilustrar os modelos correntes da “acção” e dos “efeitos especiais” mas, ao mesmo tempo, possui qualquer coisa de eminentemente frio e cerebral. Nesta época de telenovelas e reality shows, isso é precioso. Ou seja: uma personagem que pensa.

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É bem verdade que muito da carreira de Tom Cruise se decidiu em lendários confrontos com notáveis veteranos de Hollywood. Paul Newman, por exemplo, com quem contracenou em A Cor do Dinheiro (1986), sob a direcção de Martin Scorsese; ou Dustin Hoffman, seu companheiro (e irmão!) no elenco de Rain Man (1988), de Barry Levinson. Em todo o caso, a sua popularidade foi-se alicerçando através de personagens ligadas aos tradicionais action films, a começar por Top Gun (1986), um retrato da elite dos pilotos de aviação, encenada como uma banda desenhada por Tony Scott. Depois, a personagem do agente secreto Ethan Hunt, em Missão Impossível (1996), de Brian De Palma, transformou-se numa espécie de “alter ego” da identidade cinematográfica do actor, gerando nada mais nada menos que três sequelas; o quinto título da série já consta da sua agenda, embora com lançamento previsto apenas para 2015.
De acordo com notícias recentes, a direcção de Missão Impossível 5 deverá pertencer a Christopher McQuarrie, precisamente o realizador do novíssimo filme de Cruise, Jack Reacher. O seu nome está ligado a Os Suspeitos do Costume (1995), de Bryan Singer, objecto de culto do moderno policial que lhe valeu o Oscar de melhor argumento. Aliás, a sua colaboração com Cruise começou também através do mesmo cineasta: foi McQuarrie que escreveu o drama de guerra Valquíria (2008), evocação de uma conspiração para matar Adolf Hitler, com Singer a dirigir e Cruise a protagonizar.
O ponto de partida de Jack Reacher é um dos livros (o nono, num total de dezassete) de Lee Child centrados na personagem de Reacher (título original: One Shot, publicado em 2005). Estamos perante um registo de thriller que, a pouco e pouco, se transfigura em verdadeiro exercício mental de investigação e decifração. Muito desse efeito provém do cuidado com que McQuarrie e Cruise quiseram fugir ao estereótipo do tradicional investigador policial. De facto, Reacher começa por distinguir-se pela sua bizarra solidão: sem lugar certo, alheio a qualquer enquadramento institucional, ele é aquele que, como uma aparição, surge do “nada” para corresponder ao pedido de um ex-companheiro do exército acusado de ter morto, a sangue frio, à distância, cinco pessoas que passavam numa zona pedonal da cidade de Pittsburgh.
Para além das muitas diferenças de ambiente e estilo, apetece dizer que, mesmo com as incontornáveis cenas de acção, Jack Reacher possui algo de um clássico “mistério-até-ao-fim” assinado por Agatha Christie. Além do mais, a relação de Reacher com a advogada de defesa (Rosamund Pike) do suspeito retoma um registo de ambíguo romantismo pouco frequente em títulos recentes, claramente devedor de muitas variações do filme noir, em especial das décadas de 1930/40.
Para Tom Cruise, a aposta em Jack Reacher envolverá, talvez, a possibilidade de criação de uma nova “franchise”. Seja como for, nos próximos dois anos, o domínio de eleição de Cruise parece ser a ficção científica, através de duas aventuras já anunciadas: Oblivion (2013), de Joseph Kosinski, e All You Need Is Kill (2014), de Doug Liman.