domingo, dezembro 02, 2012

A arte de re-compor (parte 1)


Uma das mais estimulantes séries de lançamentos discográficos do nosso tempo está a mostrar de forma bem clara que a velha noção de frontera entre géneros musicais está tão derrubada como o Muro de Berlim. Este texto é parte de um artigo publicado na edição de 24 de novembro de 2012 do suplemento Q. do com o título ‘Quando a música do pasado ajuda a inventar a música do futuro.

A evolução da música está inevitavelmente ligada à história dos instrumentos e, desde que há gravações, à tecnologia associada à captação e manipulação dos sons. O aparecimento do piano no século XVIII, a expansão da orquestra sinfónica no século XIX ou o aparecimento de instrumentos eletrónicos no século XX abriram espaço a novos sons e até mesmo a novas formas musicais. Na história recente da música popular tem sido particularmente visível a forma como a sucessiva entrada em cena de novos instrumentos e novas tecnologias tem assegurado os saltos evolutivos. A guitarra elétrica determinou os caminhos do rock’n’roll nos anos 50 e a “eletrificação” da música folk em meados dos anos 60. O surgimento de gravadores multi-pistas fez do próprio estúdio uma ferramenta ao serviço da criação musical em finais dos anos 60 (com nomes como os Beatles ou Beach Boys a dar-nos primeiras expressões das novas potencialidades da tecnologia ao serviço da música), amplificando então a complexidade dos arranjos das canções. Já nos anos 70, a proliferação dos sintetizadores lançou as bases para uma nova pop eletrónica e, mais adiante, com a chegada de sequenciadores, caixas de ritmos e samplers, os espaços da house, do techno e de outras expressões daí decorrentes. Ainda em finais dos anos 70, a descoberta de que o gira-discos podia ser ele mesmo uma fonte de som à disposição do músico permitiu estruturar uma nova lógica de construção musical da qual nasceria o hip hop... E a história não acaba aqui...

Apesar de muitas destas formas e tecnologias terem uma maior penetração nos espaços da música popular, a verdade é que a música erudita do nosso tempo tem apreendido e integrado ideias, formas e sons. Ouvimos eletrónicas, segundo formas habitualmente presentes na atual música de dança, em Ayre, um recente ciclo de canções do compositor argentino Osvaldo Golijov. O norte-americano Nico Muhly, um dos mais ativos compositores do século XXI (com obra repartida entre a música erudita e a popular) conhece e domina estas tecnologias e formas. O mexicano Murcof cruzou épocas e linguagens musicais ao juntar texturas eletrónicas a ecos da memória de Lully e outros compositores da época em The Versailles Sessions. E o inglês Ambrose Field criou outra ponte ainda mais distante, juntando peças vocais do compositor medieval Guillaume Dufay a eletrónicas do presente em Being Dufay, um dos discos recentes que mais desafiou a velha noção de fronteira entre a música clássica e as formas musicais de um presente onde as antigas nomenclaturas vão sendo cada vez mais difíceis de aplicar.

Esta ideia da saudável transgressão face ao que antes pareciam fronteiras claras entre géneros está a ser assimilada pela Deutsche Grammophon (DG). Uma das mais célebres das editoras discográficas com catálogo essencialmente centrado na edição de música clássica, a DG lançou em 1995 o álbum de Todd Levin DeLuxe, que desafiava todas as catalogações. Pelo seu catálogo encontramos nomes como os de Sting e, mais recentemente, Tori Amos, figuras com obra reconhecida nos domínios da canção popular. Mas se há discos onde a DG vinca essa vontade de romper cânones e, assim, ajudar a inventar a música do nosso tempo (e, quem sabe, a do futuro), eles são os que têm sido lançados pela série a que chamou Re-Composed.