sábado, novembro 03, 2012

Rock dell' Arte

Este texto sobre os Velvet Underground e o seu álbum de estreia. foi originalmente publicado no suplemento 6ª, do DN, em 2006, com o título 'Rock dell'Arte'. Recordamo-lo neste 2012 que assinala o 45º aniversário do disco.

Poucos foram os que, na época, terão comprado o álbum de estreia dos Velvet Underground, mas raros entre esses milhares de compradores foram os que não formaram, logo depois, uma banda. A observação, habitualmente atribuída a Brian Eno, dá conta da importância fulcral que este disco desempenhou na história da música popular, sendo-lhe hoje reconhecido um papel de catalisador de novas ideias como poucos terão desencadeado.

Foram apenas oito anos de vida como banda, metade desse tempo já sem a formação “clássica” que deu corpo à esmagadora maioria dos momentos que fizeram a história do grupo. Foram a primeira banda a cruzar consequentemente os mundos e energias da cultura pop com o aventureirismo avant garde, a trazer outra sensibilidade literária ao rock’n’roll, a cruzar diversos media com vista a uma ideia maior. Foram apadrinhados, agenciados, produzidos, por Andy Warhol, e nele conheceram um motor de arranque que rapidamente lhes deu transversal visibilidade. Foram-se desentendendo, desagregando aos poucos, desaparecendo sem que a notícia se fizesse aos jornais, em inícios de 1973. E é só bem depois que, aos poucos, pelas heranças então projectadas em novas bandas, pela visibilidade crescente das carreiras a solo de Lou Reed e John Cale, deixam de ser a banda do underground de Nova Iorque (entretanto com culto já formado na Europa desde finais de 60) e ganham estatuto de ícone incontornável na história da música do século XX.

O mundo da música não seria o mesmo sem os Velvet Underground. Apesar de nascido nos dias de uma intensa manifestação de novas liberdades formais e de evidente erupção popular de diversas formas de contracultura, o som dos Velvet Underground revelou-se de visão maior e afirmou a diferença entre os diferentes. Nos antípodas de uma multidão de cultores das novas verdades quimicamente induzidas no Verão da paz e amor, do flower power, o som cru e o realismo das palavras cantadas dos Velvet Undergound, desencadeava outras reações, despertava outras atenções. Lou Reed, o autor da esmagadora maioria das canções do grupo, partia dos universos em seu redor, dos lados errados da noite, de figuras perversas e cruas, e aí procurava o belo. Injectava uma pulsão de brutalidade, realista, na arte. E, fiel aos seus princípios, enfrentava sem receio o status quo criativo dominante.

O próprio nome escolhido para a banda denota uma vontade em assumir, desde logo, uma posição. Encontrado entre o “lixo” deixado pelo inquilino anterior do apartamento para onde Lou Reed se mudou por alturas da formação da banda, o livro de 1963 do jornalista norte-americano Michael Leigh, Velvet Underground, chamou a sua atenção por abordar sem pudor uma série de temáticas ligadas a manifestações menos vulgares de sexualidade (dos swingers à escravidão), o sadomasoquismo sendo uma das suas principais fontes de reflexão. O livro exibia claro o objectivo do autor em demarcar no seu tempo um momento de mudança de comportamentos sexuais na sociedade americana e, pela forma como juntava resultados de uma investigação jornalística a uma linguagem que revelava o tomar de uma posição, acabou tomado como um texto de interesse sociológico (hoje, contudo, um tanto esquecido). Lou Reed gostou das afinidades possíveis entre os temas abordados no livro e as letras que começava a escrever para as emergentes primeiras canções da nova banda, uma delas sendo Venus In Furs, título baseado no histórico livro de Leopold von Sacher-Masoch (entre nós traduzido como A Vénus das Peles). Tanto quanto as temáticas abordadas, o título em si mesmo agradou aos músicos. Sterling Morrisson gostou das evocações possíveis de afinidade com o cinema underground. O nome ficou.

O ineditismo e a consequência artística dos Velvet Underground não se esgota, contudo, no seu compositor principal. Lou Reed procurou transportar para o universo da canção rock’n’roll a sensibilidade de autores como Raymond Chandler, Hubert Shelby, Delmore Schwartz ou Edgar Allan Poe e abriu espaço para as então pouco habituais narrativas sobre a decadência, as drogas, os travestis, a homossexualidade, a depressão ou o suicídio, em muitos casos retratos da observação directa sobre os sub-mundos da Nova Iorque de meados de 60. A sua escrita é, de facto, um dos pilares estruturais na construção da identidade da banda que hoje é reconhecida como a autora das primeiras manifestações de art rock. Mas esta mesma personalidade artística deve muito à presença de John Cale, músico galês até então ligado aos espaços da música experimental, tendo sobretudo trabalhado com La Monte Young. Apesar de encantado pela vitalidade do rock’n’roll quando militou com Lou Reed na fugaz carreira dos The Primitives (em 1965), nunca deixou de procurar caminhos diferentes, nascendo até algum do seu desconforto (que conduziria ao afastamento voluntário do grupo em 1968) de divergências musicais, evidentes por exemplo no contraste entre Hey Mr Rain (linha Cale) e Stephanie Says (linha Reed), na derradeira sessão conjunta da formação inicial, em Fevereiro de 1968. O sentido rítmico invulgar garantido pela baterista Moe Tucker e as guitarras de sentido mais clássico (e elegante) de Sterling Morrisson são peças não menos importantes na definição de um todo que viveu da inteligente amálgama da contribuição das partes.


Marianne Faithfull podia ter sido a madrinha dos Velvet Underground, a ela tendo John Cale entregue uma maquete em Julho de 1965, esperando que a gravação acabasse nas mãos de Mick Jagger... Essa maquete é hoje conhecida, incluída no alinhamento da caixa Peel Slowly And See, de 1995. Mas de Marianne Faithfull, não mais ouviram palavra. E não muito depois, uma vez apresentados pela art groupie Barbara Rubin a Gerard Malanga, Andy Warhol viu-os no seu segundo concerto no Café Bizarre e neles reconheceu a peça musical que procurava para uma série de eventos multimédia que planeava e que depois fizeram história no Don Theatre. Ao mesmo tempo, a noção de multiplicação de imagens que o disco permite cativou o seu interesse. Podia levar mais longe ainda uma lógica de dessacralização do quadro, filosofia com fundamentos anteriores ao atentado de Valerie Solanas contra Warhol (1968) e a uma etapa posterior, em que a noção de negócio ganharia outro protagonismo na sua agenda.

Warhol foi, durante mais de dois anos, o fã mais ativo que tiveram. Abriu portas, criou oportunidades, assinou o seu álbum de estreia como “produtor” e para ele fez uma das mais memoráveis capas da história da música gravada. Via Warhol, a música dos Velvet Underground circulou por rotas e destinos habitualmente distantes das vivências pop/rock “convencionais”. Não admira que uma canção sua possa ter hoje tanto peso quanto um quadro de Jasper Johns ou mesmo de Warhol na ilustração de um tempo artístico concreto na história americana do século XX.

Frequentemente criticado na época, até mesmo pelos elementos da banda, por “não ter feito nada”, o papel de Warhol junto dos Velvet Underground foi entretanto reavaliado, Lou Reed e John Cale tendo inclusivamente tomado importante passo nesse sentido quando, em 1990, gravaram o belíssimo Songs For Drella, um requiem pop pelo seu velho amigo. Foi, até, por ocasião de uma actuação conjunta das canções desse disco, na abertura de uma exposição de obras de Warhol na Fundação Cartier, em Paris, que Moe Tucker e Sterling Morrisson reapareceram juntamente com Cale e Reed num mesmo palco para oito minutos de simbólico reencontro ao som de Heroin. Indício de uma reunião que começou por ganhar forma em concertos em solo europeu em 1993 (dos quais nasceu um disco e um filme), abortada antes da etapa americana e de um eventual novo álbum de originais por novo desentendimento. Entre Lou Reed e John Cale.

Em diversas entrevistas Lou Reed recordou já o fascínio com que Warhol, que os descobrira um ano antes e integrara como força musical dos seus eventos Exploding Plastic Inevitable e presença regular na sua Factory, acompanhava em 1966 as gravações do álbum de estreia. “Ele fez com que nos fosse possível sermos nós mesmos”, lembra o músico. E, mesmo reconhecendo que Warhol nada sabia de produção musical, o simples facto de dizer, a cada gravação, “Oooh, that’s fantastic!”, fazia com que o engenheiro de som aquiescesse e seguisse para a faixa seguinte sem discutir faces rugosas, pregos soltos ou outras “imperfeições” com os músicos. Warhol era uma figura hábil na gestão de colisões entre gentes e ideias, e foi fundamental no processo, difícil, sugerido por Paul Morrisey, que levou Nico (modelo e actriz alemã feita presença regular na Factory) aos Velvet Underground por apenas alguns meses, sendo a sua breve presença vocal no álbum de estreia outra das suas marcas mais memoráveis (o que não impediu que acabasse afastada meses depois da sua edição, tal como o seria Warhol). Sereno na relação como longe dela, Warhol libertou os Velvet Undreground da sua esfera de ação no dia em que a banda o pediu. E, resultado de uma entre as muitas más acções de gestão interna (não musical) da banda, Warhol acabou sem ver um tostão da parte que lhe cabia pelas vendas do álbum de 1967.

Apesar de tidos como dispensáveis pela banda, os afastamentos de Nico e Warhol acabariam por ter repercussões na música e carreira da banda. O segundo álbum, em 1968, White Light/White Heat, contempla uma noção de anti-beleza. Saído Cale, logo depois, Reed conduziu a música num sentido mais clássico, daí resultando o mais convencional The Velvet Underground (1969), o primeiro disco no qual surge Doug Yule, que teve entre mãos, um ano depois, a conclusão de Loaded, já para uma nova editora, e sem Lou Reed nas fileiras. Pelo caminho, um álbum perdido, resultado de uma “limpeza” decretada pelo novo responsável da MGM, editora que afastou do seu catálogo todos os artistas que contrariassem a velha ordem moral. Apesar de despedidos, ficaram sem as fitas das sessões de 1969, que acabariam por ver a luz do dia nos anos 80, entre as compilações de inéditos VU (1985) e Another View (1986). Houve ainda um quinto álbum “oficial” de inéditos, no qual não colaboraram já Moe Tucker nem Sterling Morrisson. Mais um disco a solo de Doug Yule que dos Velvet Underground, Squeeze (1973) teve curtas edições em vinil e, sob impedimento decretado por Lou Reed, não pode ser reeditado em CD como sendo um álbum da banda... Raridade durante anos, o disco circula hoje em ficheiros pela Internet, sinal de não aceitação do status quo legalmente definido por Lou Reed. Virou-se o feitiço contra o feiticeiro?


Gravado em apenas três sessões de estúdio, dispersas entre abril e novembro de 1966, o álbum de estreia dos Velvet Underground é, também, a sua obra-prima. Um dos mais marcantes discos da história, frequentemente apontado como o momento da definitiva demarcação de uma identidade “alternativa” em terrenos pop/rock, é a materialização perfeita das diversas ideias (e pessoas) que confluíram para se manifestar naquele momento, naquele lugar. A música é intensa, verdadeira, livre e não polida, descobre vários caminhos, da melodista balada pop a surtos de erupção sónica. O tom realista das palavras de Lou Reed, as suas histórias de ruelas, noites, drogas, sexo, demência ou depressão, revela o oposto ao flower power que então dava mãos e inundava a oferta discográfica sob rótulo de contracultura feita grito de juventude. Os Velvet Underground eram diferentes entre os diferentes. Mas verdadeiros entre inúmeras encenações de pop sem arte.

Depois de inicialmente apontado à Columbia Records, o disco acabou, negociado por Warhol, na Verve, editora que então procurava expandir o seu catálogo a outros horizontes. As gravações nos decadentes Scepter Studios em Nova Iorque, em Abril de 1966, tinham definido o essencial do álbum, mas sob o contrato com a nova editora, três canções (I’m Waiting For The Man, Venus In Furs e Heroin) foram regravadas em Hollywood, no mês de maio. Buscando um single (e não o encontrando, evidente, no alinhamento), Tom Wilson, produtor “profissional” ao serviço da Verve, pediu à banda que criasse e gravasse um, na voz de Nico. Lou Reed e John Cale responderam com uma balada melodista nascida às seis da manhã num domingo sem noite dormida. No momento de a gravar, em Novembro, nos Mayfair Studios (Nova Iorque), Lou Reed não deixou Nico cantar e, de voz alterada, gravou ele mesmo a canção. Ao vivo, enquanto se manteve na banda, Nico cantou, depois, Sunday Morning.

Este é o perfeito tema de abertura para um álbum de invulgar versatilidade de sentidos. Canta-se sadomasoquismo em Venus In Furs, espera-se a dose e o dealer em Waiting For The Man. As drogas surgem novamente em Run, Run, Run e Heroin. Enfrentam-se cenários sem alternativa possível em Black Angel’s Death Song. Misoginia e violência em There She Goes Again. Sente-se o pulsar da vida na Factory pelo olhar observador de Lou Reed em All Tomorrow’s Parties, descodificam-se possíveis ideias nas relações com Nico em I’ll Be Your Mirror. Nico, ainda, a encarnar uma personagem que se crê baseada em Edie Sedgwick, em Femme Fatale, um dos mais belos momentos de todo o disco (e razão, se alguma é necessária, para justificar, mesmo contra a vontade dos restantes músicos, a passagem da alemã pelo seu primeiro disco). A fechar, European Son, dedicatória a Delmore Schwarz. Pop, blues, distorção, liberdades formais, psicadelismo, folk, rock’n’roll. Destinos aparentemente distintos, mas espantosamente unos sob uma personalidade maior. Comum. E Warhol? O produtor não musical que, sem premir um botão ou dar uma sugestão, garantiu todavia rara liberdade desejada a uma banda em demanda sem freios. E distante das regras do seu tempo. Ignorado, mesmo por alguma crítica musical, o álbum foi discretamente lançado em março de 1967, poucos meses depois do igualmente (comercialmente) mal sucedido single, Sunday Morning, editado como avanço em Dezembro do ano anterior (e quase meio ano depois da produção de um primeiro outro single, All Tomorrow’s Parties, apresentado como peça promocional às rádios em Outubro de 1966). Promovido pela Verve como um artefacto de Warhol e não tanto um álbum de uma nova banda pop/rock, The Velvet Underground And Nico foi inclusivamente alvo da suspeita de muitos que nele não imaginavam mais que uma operação camp e vistosa do artista pop. O tempo, contudo, encarregou-se de fazer deste não só o mais célebre dos álbuns da banda como um dos mais reconhecidos e influentes de toda a história da música popular.