Nunca tinha lido o livro e foi uma das leituras do ano, ao lado d’As Benevolentes de Jonathan Littel. E, curiosamente, com tantas afinidades...
A edição, pela Sextante, de Um Dia Na Vida de Ivan Denissovitch coloca-nos assim perante uma das obras maiores de Aleksandr Soljenitsin (Nobel da Literatura em 1970) e, ao mesmo tempo, uma das maiores denúncias do regime de campos de trabalho da extinta URSS sob o regime de Estaline. O romance segue o arco narrativo de um dia na vida de um prisioneiro num gulag (os campos de trabalho da URSS), espaço que o próprio autor conheceu e viveu em pessoa, tendo contudo criado a figura do protagonista à imagem de um seu antigo companheiro de armas nos dias da II Guerra Mundial. Sob um frio intenso, a rotina sem ânimo nem humanidade dos prisioneiros é assim condensada em 24 horas de pura e constante assombração, medo, desencanto. Todos os dias acordam esperando que o termómetro desça abaixo dos 40 graus negativos, a temperatura abaixo da qual havia ordem para ninguém sair para trabalhar no exterior. Não é o caso nesse dia e, com Ivan, descobrimos que o inferno não é só aquela imagem de fornalhas e diabos que a nossa cultura há tantos séculos fixou.
“O vento assobia sobre a estepe nua, quente no verão, gelado no inverno. Nunca cresceu nada nesta estepe, nem entre as quatro redes de arame farpado. O pão só cresce em fatias na padaria, a aveia espiga no depósito de produtos. E por mais que rebentes as costas a trabalhar, por mais que te rojes no chão, não arrancarás comida a não ser aquela que te dá o chefe. E mesmo essa não a receberás toda, por causa dos cozinheiros, e dos ajudantes, e de todos os outros”, lemos na página 74.
O dia de Ivan é coisa escura e sem horizonte. Habitado por seres mesquinhos, que exercem o poder de forma corrupta, separando as sortes de cada um segundo o lugar que ocupam na hierarquia do campo. O horror do campo não é o mesmo de Auschwitz. Mas o vazio de humanidade destes carcereiros é de escola semelhante.