sábado, novembro 03, 2012

A televisão contra Hitchcock

A televisão portuguesa interessa-se pouco por Alfred Hitchcock. Entretanto, os comentadores de futebol insistem em proclamar a sua pueril "justiça" — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 Novembro), com o título '"Suspense" sem Hitchcock'.

A persistência com que muitos comentadores de futebol conduzem as suas observações para a consagração de um conceito “legal” (resultado “justo”/resultado “injusto”) é sintomática do impensado da sua prática. Assumem-se, desse modo, como juízes de uma lei que não está, nem pode estar, enunciada em nenhum lugar: uma coisa é emitirem juízos de valor sobre cada uma das equipas; outra será, por distracção ou arrogância, acreditarem que os resultados do futebol existem para ilustrar esses mesmos juízos de valor.
Não é um pormenor. Há nessa obsessão “legalista” um sintoma de uma vontade normativa que, com o passar dos tempos, se consolidou como ideologia dominante do jornalismo televisivo. Qual o seu valor fundamental? A noção, implícita ou insinuada, de que a televisão não existe para dar conta da pluralidade do mundo, antes para lhe impor uma ordem simbólica.
Aliás, não é por acaso que os mesmos comentadores chegam ao ponto de considerar que há resultados que se “aceitam”. Querem eles dizer que aquilo que aconteceu dentro das quatro linhas está “obrigado” a ilustrar a verdade do seu próprio discurso. E escusado será dizer que concebem essa verdade como coisa única, unívoca e compulsiva.
Continuo à espera que expliquem como se deve lidar com os resultados “inaceitáveis”... Seja como for, a sua pueril obsessão normativa diz bem do artifício que protagonizam e, conscientemente ou não, impõem: a televisão seria uma máquina imaculada de produção de verdade.
Entretanto, há uma unidade de linguagem que, muito para além do futebol, tal máquina está a utilizar com crescente frequência: a entrevista com alguém que não mostra a cara (ou de quem se disfarça a voz). É um facto que há depoimentos com pertinência jornalística que implicam essa protecção dos entrevistados. Não é isso que está em causa. O que está em causa é que algum jornalismo se acomode numa parada de banais efeitos de “suspense”, como se isso fosse uma prova automática da exigência cognitiva que o seu olhar (não) possui. Regressar a Hitchcock ajudaria a repensar também o labor de conhecer a complexidade do mundo.