O novo filme de Tony Kaye, O Substituto/Detachment, é um daqueles acontecimentos de cinema que, no nosso mercado, se confunde com um... não-acontecimento. Porque tem um lançamento ultra-discreto e, acima de tudo, porque não goza dos favores mediáticos automaticamente concedidos a blockbusters e afins — estes textos foram publicados no Diário de Notícias (18 Novembro), com os títulos 'Barthes, Camus e os outros' e 'Adrien Brody interpreta um professor de uma escola problemática', respectivamente.
Não tenhamos receio das palavras grandiosas: O Substituto, de Tony Kaye, é um dos filmes mais espantosos que, este ano, chegou às salas portuguesas. O seu retrato das atribulações de uma escola consegue uma proeza rara: dar a ver como os problemas estruturais do ensino não podem ser pensados descartando as histórias pessoais de alunos e professores. Kaye trabalha tudo isso através de uma linguagem de incrível agilidade, cruzando a mais contundente observação realista com o delírio dos mundos interiores.
Como se fosse um ensaio do francês Roland Barthes (1915-1980), O Substituto mostra que o ser humano é feito tanto da consciência da sua identidade social como da errância existencial do seu desejo. Para evitar confusões, a personagem interpretada pelo admirável Adrien Brody chama-se Henry... Barthes. Aliás, a cultura francófona mais ou menos marcada pelas convulsões do existencialismo parece fazer parte da agenda de Kaye, já que a singularíssima palavra do título original, Detachment, provém de uma citação de Albert Camus (1913-1960): em causa está o “distanciamento”, algures entre a solidão e o desencanto, que leva o indivíduo a afastar-se do quotidiano, ao mesmo tempo que o contempla como uma cruel máquina de verdades e mentiras.
Implicitamente, O Substituto denuncia a demagogia voluntarista dos debates que a televisão nos impinge, reduzindo alunos e professores a peões abstractos de um “sistema”. Porque é que a sua ousadia não o transforma num genuíno acontecimento noticioso? Porque este não é um filme que envolva muitos milhões de dólares... A opção dominante consiste em multiplicar notícias (?) sobre a avassaladora mediocridade do novo episódio da saga Twilight. Eis um bom tema complementar: a deseducação audiovisual dos jovens.
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São muitos, e muito variados, os filmes americanos que, ao longo das décadas, abordaram os problemas internos de liceus e escolas secundárias. Para nos ficarmos pelos exemplos mais óbvios, lembremos Sementes de Violência (1955), de Richard Brooks, que transformou Sidney Poitier numa estrela, A Última Sessão (1971), de Peter Bogdanovich, tendo a guerra da Coreia como pano de fundo, ou ainda Carrie (1976), de Brian De Palma, uma variante em registo de cinema de terror.
O novo filme dirigido por Tony Kaye, O Substituto/Detachment, é um herdeiro directo dessa tradição, centrando-se na experiência dramática de Henry Barthes (Adrien Brody), um professor que, ao iniciar um período transitório de trabalho num liceu, encontra um ambiente de perturbante instabilidade. Para além de uma violência mais ou menos latente, há todo um sistema de relações entre gerações que se encontra profundamente abalado: por um lado, a comunicação entre professores e alunos quase não funciona; por outro lado, a relação da escola com as famílias (muitas delas disfuncionais) é dramaticamente débil, para não dizer inexistente.
Em todo o caso, o filme de Tony Kaye, a começar pelo seu argumento (da autoria de Carl Lund), não se esgota no retrato de uma “juventude inquieta” (para utilizarmos a expressão portuguesa que serviu de título a Rumble Fish, a clássica crónica juvenil assinada por Francis Ford Coppola, em 1983). Na verdade, O Substituto propõe também uma viagem ao universo atribulado de um grupo de adultos desencantados com os limites do sistema de educação em que são, ou deviam ser, agentes essenciais. Mais do que isso: a pouco e pouco, a odisseia de Barthes vai-se cruzando com outras histórias, incluindo a da muito jovem Erica (Sami Gayle), que ele tenta afastar da prostituição. Em última instância, ele vai ter de enfrentar as marcas da sua própria história pessoal, em particular a cruel herança emocional deixada pela vida de sofrimento da sua mãe.
Sendo O Substituto um objecto visceralmente americano, a sua realização pertence a um inglês. Nascido em Londres, em 1952, Tony Kaye é o autor do muito celebrado American History X/América Proibida (1998), uma visão radical da violência racista, encenada a partir da experiência de dois irmãos, interpretados por Edward Norton e Edward Furlong (o filme valeu a Norton uma nomeação para o Oscar de melhor actor). A sua filmografia inclui Lake of Fire (2006), um exercício documental sobre a problemática do aborto, com grande impacto em diversos festivais internacionais, embora nunca lançado no mercado português.
Tony Kaye é, obviamente, alguém com grande prestígio na comunidade cinematográfica, a ponto de, em O Substituto, conseguir reunir um elenco que, além de Brody, inclui Marcia Gay Harden, James Caan, Blythe Danner, William Petersen e ainda os nomes “televisivos” de Christina Hendricks (Mad Men) e Bryan Cranston (Breaking Bad). Em qualquer caso, não é possível defini-lo apenas como realizador de filmes. Ele é um criador multifacetado que tem experimentado domínios tão diversos como a realização de telediscos (é dele o célebre Runaway Train, de 1992, em que os Soul Asylum abordavam a questão das crianças desaparecidas), a pintura, a escrita literária e ainda a composição e interpretação de canções. Aliás, um sinal dessa pluralidade pode encontrar-se na ficha técnica de O Substituto: tal como nos seus outros filmes de fundo, é também ele que assume as funções de director de fotografia.