sexta-feira, outubro 19, 2012

Televisão & Oscars

Tudo indica que a série Luck, com Dustin Hoffman, vai ficar como uma espécie de clássico adiado na história da nossa época televisiva... Isto numa conjuntura em que o anúncio de Seth MacFarlane como apresentador dos Oscars não pode deixar de suscitar uma desconcertante avaliação — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Outubro), com o título 'Encruzilhadas de cinema e televisão'.

Há muito que as relações cinema/televisão deixaram de obedecer à lógica que prevaleceu durante muitos anos, com o pequeno ecrã a funcionar como eco das histórias e mitologias das salas escuras. Há mesmo uma ou duas gerações cujo olhar já se formou, no essencial, através de dispositivos televisivos (incluindo o ecrã de computador). E escusado será lembrar que o boom de ficções televisivas pós-Twin Peaks (1990-91) transfigurou por completo as coordenadas económicas e criativas do audiovisual.
Um dos sintomas mais recentes, e também mais desconcertantes, desse estado de coisas foi o anúncio do nome de Seth MacFarlane [foto] como apresentador da 85ª cerimónia dos Oscars (24 de Fevereiro de 2013). Creio que não será exagero supor que muitos espectadores se limitaram a reagir com uma pergunta automática: “Quem é Seth MacFarlane?”. Não que o seu trabalho seja desconhecido ou impopular: ele é, afinal, o criador da série de animação Family Guy e realizou o filme Ted (com Mark Wahlberg a ter por fiel companheiro o ursinho de peluche da sua infância). Acontece que a figura de MacFarlane não pertence, nem de longe nem de perto, ao imaginário clássico de Hollywood, sendo a sua escolha um simples sintoma (mais um...) do triunfo de regras televisivas. Dito de outro modo: a Academia de Hollywood e o canal que transmite os Oscars (ABC) continuam a tentar recuperar as audiências perdidas ao longo dos últimos anos.
Neste contexto, assiste-se a uma exuberância televisiva marcada por curiosos desequilíbrios e contradições. Assim, é verdade que o universo das séries cresceu de forma espectacular, parecendo mesmo existir um novo modelo de espectador, “aquele que só vê séries de televisão...”, que corresponde a uma variação involuntariamente anedótica do protótipo do cinéfilo clássico. Ao mesmo tempo, há séries que se afirmam através de uma sofisticação conceptual e artística que mantém uma significativa relação com as heranças do património clássico de Hollywood: por vezes com grande impacto (Mad Men), outras vezes olimpicamente ignoradas pelo jornalismo que só corre atrás dos vencedores (lembremos o caso extraordinário de Smash, a cuja produção está ligado Steven Spielberg, revisitando de modo fulgurante o género musical).
Neste jogo de fenómenos mais ou menos grandiosos e proezas mais ou menos ignoradas, surge o caso fascinante de Luck, série criada por David Milch, produzida e interpretada por Dustin Hoffman, retratando os bastidores das corridas de cavalos na Califórnia (Michael Mann, um dos produtores executivos, dirigiu o episódio nº1). Na sequência de uma série de acidentes de rodagem em que morreram três cavalos, a série foi cancelada, tendo ficado pela primeira e escassa temporada. Sobrou, em todo o caso, o exemplo de uma riqueza narrativa em que os valores televisivos e cinematográficos se fundem na excelência dos resultados.