domingo, outubro 07, 2012

Em conversa: Gary Numan (2)

Esta é a transcrição (editada para 2012) de uma entrevista originalmente publicada nas páginas do suplemento DNmais.

Há 30 anos a tecnologia ao serviço da música era diferente. Sentia-se limitado?
Bom, nós fazíamos uma espécie de sampling, mesmo antes das máquinas existirem. Usávamos um gravador, que levávamos para a rua. Gravávamos barulhos, ruídos. No estúdio manipulávamos as gravações e criávamos um loop em fita. Desde que acautelássemos a duração necessária de loop, podíamos usá-lo, até mesmo a diferentes tonalidades. Por vezes acertávamos, outras errávamos...

Trabalhava nos limites da tecnologia em finais de 70?
Sim, tentávamos esticar até onde fosse possível. Havia gente que o fazia melhor que eu, claro. Mas tentei ir onde podia... Na verdade, urna das frustrações que senti mais tarde, ao escutar esses discos é que lhes apontei falhas notórias na produção. Parecia-me vazia. As melodias estavam boas, mas a produção parece-me inacabada... Nesse departamento avançou-se muito. E aprende-se muito com os erros. Creio que, de um ponto de vista técnico, devemos tentar fazer sempre um trabalho melhor de álbum para álbum. É claro que podemos ter melodias melhores ou piores, até porque cada artista tem bons e maus períodos, mas tecnicamente devemos melhorar sempre.

Defende a mesma política de apuramento progressivo no palco?
Pelo menos tento. Não sei se consigo sempre... Há elementos em que tento sempre melhorar. Mas ainda .não sei dançar! Não tenho o mínimo jeito! Uma das vantagens que se tem ao fim de tanto tempo de vida de palco é o aprender a dominar a ansiedade que os concertos trazem naturalmente. A experiência ajuda-nos' a dominar essas ansiedades. Ë com a confiança nasce uma performance mais "definitiva". Não sou tímido em palco, nem me sinto nunca embaraçado... A música que faço agora é mais agressiva, e tenho comigo urna banda que me ajuda a poder projectar esse som. E confesso que cada vez mais gosto de tocar ao vivo. Gosto muito desta banda com quem trabalho... A música que tocamos não é feliz, é certo, mas passamos belos momentos.

Diz que a sua música não é feliz... E é verdade que nunca fez uma canção para nos fazer sorrir... Mas tem tido uma vida feliz...
(risos) Sou um homem feliz. Tenho o emprego perfeito, adoro fazer o que faço!

Mas não escreve melodias alegres.
De modo algum! Há quem o faça bem melhor que eu.

E como ouvinte, escuta música alegre?
Nem como ouvinte! Não me interessa. Posso estar feliz sern que isso dependa da música. Ouço música por outras razões. Ouço música se o tema me interessa. E quando estou muito feliz a última coisa que faço é ouvir música. Saio, vou fazer outras coisas. , Ouço música para encontrar outro estado de espírito, para me inspirar... Fascino-me... Gosto de ouvir canções de pessoas que tiveram vidas muito diferentes da minha, que tenham feito coisas diferentes das que fiz. Coisas bizarras, negras... Vidas sexuais estranhas ou problemas complicados com drogas. Coisas em que não toquei. Fascino-me por quem consiga também tocar em questões relacionadas com religião. No fundo, o tipo de abordagem de um Marilyn Manson, de uns Nine Inch Nails.

Havia indícios de algumas dessas temáticas em Replicas...
É verdade. Havia alguns ambientes pesados. Foi talvez por isso que pessoas como o Marilyn Manson ou o Trent Reznor se interessaram pelo meu trabalho e me apontaram como influência deles. Eles, de certa forma, pegaram no que eu tinha feito, mas levaram as coisas bem mais longe. Hoje, curiosamente, sou eu quem está a pegar naquilo que eles fizeram, para me inspirar...

Uma espécie de 'feed back'...
Creio que nos alimentamos uns dos outros em termos de influências. Eu espero sempre ansiosamente por cada novo disco dos Mine Inch Naus ou Marilyn Manson, e sei que fazem o mesmo relativamente ao meu trabalho. É um circulo muito positivo. Tentamos sempre elevar o nível. Cada vez que o Trent Reznor faz um álbum, ele eleva os padrões. Eu nem sempre consegui melhorar de disco para disco. Mas com o Trent isso tem sempre acontecido.

O misto de sensações de encanto e ameaça que vemos nos Nine Inch Nails era já uma ideia cénica muito real nos seus concertos clássicos de 79/80... Gosta dessa coexistência de extremos?
Gosto muito... Nos novos concertos faço uma performance mais agitada, mas nesses conceitos mais antigos era mais teatral, mais estático. Não sei se consigo traduzir exactamente essa ideia de ameaçador, porque na vida real não sou nada ameaçador... Sou um homem calmo e pacato.

Porque havia tantas imagens sobre vidros nas suas canções de há 20 anos?
Sempre usei a ideia de vidro porque é facilmente quebrável, como as personalidades ou relações podem ser. Quando conheci a minha mulher falávamos muito sobre a importância do diálogo, para evitar que algo se tornasse depois quebradiço, corno o vidro. Urna vez partido, estará danificado para sempre. Eu não tenho convicções religiosas e creio que só tenho uma vida. Ao avançar no tempo, há coisas que, olhando para trás, gostaria de poder remendar...

Há muitas coisas que faria de modo diferente?
Sim, muitas...

Decisões, canções, discos...
Sem dúvida algumas canções. Fiz algumas canções horrorosas, mas na altura nasceram sempre com as melhores intenções. Mas falo mais de coisas que não disse coisas que deveria ter dito, que fiz coisas que não deveria ter feito. Lamento muitas coisas.

O sucesso súbito afectou-o?
Sempre fui um pouco paranóico... E a fama deu-me razão para justificar essa paranóia... A fama mudou-me, mas não de maneira a fazer-me sentir importante, antes pelo contrário. Fez-me sentir mais vulnerável... Em Inglaterra havia 60 milhões de pessoas. O Are Friends Electric vendeu um milhão de singles... isso fazia-me pensar que 59 milhões de ingleses não gostavam de mim... Para mim ter sucesso fez-me sentir que a maioria dos ingleses não gostavam de mim... Era a minha maneira de ler as coisas. Fechei-me muito, não saí.