A Queztal continua a editar as obras de Christopher Isherwood. E, depois de Um Homem Singular, Adeus a Berlim e Encontro À Beira Rio, eis que lança entre nós Mister Norris Muda de Comboio. Este texto foi originalmente publicado no DN a 2 de outubro com o título Ecos da agitação política na Berlim dos anos 30.
Regressamos, pelas palavras de Christopher Isherwood, a Berlim, em março de 1933, onde o incêndio do Reichstag “tinha derretido a neve”. Hitler, que fora nomeado chanceler semanas antes, usou o momento para solicitar ao presidente Hindenburg poderes especiais, um decreto emitido a 23 de março conferindo- lhe um novo estatuto. E é por essa Berlim onde “nazis fardados entravam e saíam” de uma gelataria “com cara séria, como se andassem a fazer recados difíceis” que Christopher Isherwood projeta as páginas finais de Mister Norris Muda de Comboio, romance originalmente publicado em 1935 e que, mais ainda do que o posterior Adeus a Berlim, de 1939, retrata o clima político que a cidade vivia em vésperas da ascensão ao poder de Hitler.
Isherwood centra a atenção da narrativa num obscuro homem de negócios (o Arthur Norris do título), observado por um outro inglês, William Bradshaw, também residente em Berlim. Conhecem- se num comboio, tornam- se amigos, tendo a cidade e agitação política como cenários.
Ainda a quase dois anos da vitória dos nacionais- socialistas nas eleições de 1932, Isherwood mostra- nos uma Berlim “num clima de guerra civil”, mergulhada num ambiente onde “o ódio explodia subitamente, sem aviso (...) nas esquinas das ruas, nos restaurantes, nos cinemas, nos salões de baile”. Como descreve, “sacava- se das navalhas, agredia- se com soqueiras, canecas de cerveja, pernas de cadeiras ou tacos de chumbo”... E entre as reuniões do Partido Comunista, onde numa ocasião Norris chega a discursar sobre o “imperialismo britânico” e uma visita ao Hotel Kaiserhof( onde se concentravam os apoiantes de Hitler), a narrativa acompanha os sinais instáveis de uma cidade agitada e em tempo de mudanças que se avistam no horizonte.
Como é frequente na escrita de Isherwood, a narrativa de ficção tem uma relação profunda com factos e figuras reais. William, o narrador, acaba por ser uma projeção natural do próprio escritor, que viveu na cidade entre 1929 e 1933. De resto, o seu nome não é senão parte do nome completo do autor: Christopher William Bradshaw Isherwood. Já a figura de Arthur Norris é inspirada por Gerald Hamilton, autor sobretudo de ensaios sobre história e política (nas memórias que assinou em 1956 como Mr. Norris and I chegou mesmo a recordar a sua amizade com Isherwood e como a sua figura inspirara o romance). Ecos da Berlim noturna e figuras com histórias turvas passam ainda por este livro, embora sem a relevância com que marcariam depois Adeus a Berlim. Em conjunto estes dois romances “berlinenses” são referência maior na obra de Isherwood.