sexta-feira, setembro 28, 2012

Um realizador em Versalhes

Este texto é uma versão aumentada de uma entrevista com Benoît Jacquot, publicada na edição de 26 de setembro do DN com o título 'Como as criadas sentiram a revolução'.

Versalhes, 14 de julho de 1789. Os livros de História ensinam-nos que esta não foi uma data como outra qualquer. Em Paris uma multidão assaltava a Bastilha (uma fortaleza-prisão que era um símbolo do regime). Mas no palácio, a poucas dezenas de quilómetros, a corte vivia um dia como outro qualquer. “Era um mundo fechado, impenetrável”, recorda o realizador Benoît Jacquot, que faz do seu filme Adeus, Minha Rainha um retrato dos três primeiros dias da sublevação que se transformaria na revolução francesa. Versalhes “estava guardado de tudo o que fosse informação negativa que pudesse vir do exterior”. E por isso mesmo o filme nos dá conta de como a notícia ali chegou. Lentamente. Primeiro por rumores de algo invulgar que se estaria a passar. “E quando a informação chega o pânico instala-se”, descreve o realizador, que nos mostra como essa mesma explosão de medo “é enfatizada pelo ambiente de clausura” em que muitos ali viviam.

Não é a primeira vez que o cinema nos leva à eclosão da revolução francesa. Filme de abertura da edição deste ano da Berlinale, Adeus, Minha Rainha propõe-nos contudo um olhar diferente. E se em A Inglesa e o Duque, de Rohmer, nos era dada a ver a revolução pelo ponto de vista da aristocracia, aqui quem no-la conta são os criados. Em particular a leitora da rainha (interpretada por Léa Seydoux). “Quis encontrar um ponto de vista de alguém que não é aristocrata e assiste a tudo, mas de uma forma que não é inocente”, explica Jacquot. Lembrando um outro exemplo de um ponto de vista pessoal no contar das histórias deste mesmo período, aponta o filme de 1938 La Mareseillaise, de Jean Renoir, “que na altura estava politicamente muito engagé”, sublinha. Jacquot reconhece no seu filme uma ligação ao modo de olhar o mundo das criadas que o fizeram pensar em Renoir, apesar das diferenças. “Sidonie é muito renoiriana”, sublinha.

Eram quatro mil os habitantes do palácio naquele tempo, “três mil servindo a corte, entre pessoal da cozinha, criados de quarto dos estábulos, valetes, etc”, diz o realizador que ainda recentemente sentira uma comparação possível com estes ambientes e diferenças quando leu as notícias do naufrágio do Costa Concordia.


A figura de Maria Antonieta, não sendo protagonista, “nem a razão de ser do filme”, também não deixa de ser central à ação. “Nunca teria a ideia de fazer um filme sobre a rainha e os filmes que até hoje vi sobre ela não me parecem particularmente interessantes”, justifica o realizador, para quem a mulher de Luis XIV não é a razão de ser deste filme, sendo que “foi mais a situação exposta no romance [de Chantal Thomas] que deu a ideia”. Mas reconhece o fascínio que emana da personagem, que descreve como sendo “uma lenda para os franceses”. Atrai-o contudo a identidade “algo esquizofrénica” de alguém que chegou a Versalhes “como uma princesa desolada que vem do estrangeiro” e que com o tempo “transforma o palácio num espaço de representação frívola” e que, de certa maneira “inventou o conceito de mundo da moda” (algo que, ressalva, “Sofia Coppola apanhou muito bem”). Adeus, Minha Rainha retrata mesmo assim aquele que Jacquot descreve como “o momento em que ela se coroa a si mesma”, em que “sai do seu mundo frívolo e se transforma na rainha de França”. Uma coroação com uma carga de tragédia. “E isso é fascinante”, conclui.

Baseado no romance homónimo de Chantal Thomas, Adeus, Minha Rainha sugere um clima de envolvimento romântico entre a rainha e a duquesa de Polignac. “O filme não indica que tenha havido uma relação sexual ou mesmo erótica”, diz Jacquot, que fala antes de “uma paixão”. Acrescenta, contudo, que “as amizades femininas entre a aristocracia de então tinham uma dimensão passional extraordinária”. Maria Antonieta, diz, “era muito só e há ali uma dimensão de vida de convento”, diz. “Teve as suas histórias de amor, algumas com mulheres, mas não procurei sublinhar uma abordagem sáfica, apenas que fosse erotizado”, defende.

É certo que nem só do romance de Chantal Thomas viveu a preparação do filme. “Não se pode fazer um filme como este sem reunir um conhecimento do que se vai filmar”, diz Jacquot. “O filme vem de um livro e quem o escreve é uma especialista daquele período” e essa vontade de respeitar esse rigor na representação das gentes e lugares levou-o a filmar em Versalhes (sobretudo de noite e nos dias em que está fechado a visitas), pelo que Adeus, Minha Rainha “foi feito em conivência com o Palácio, que é o primeiro destino turístico do mundo”. E sublinha: “filmar em Versalhes implica uma colaboração cerrada e um apoio positivo” da instituição. Há, contudo, “lugares que já não existem”, alguns deles “hoje transformados em escritórios” ou salas de apoio. Teve assim de criar algune décors, como é o caso do quarto da rainha no Petit Trianon, uma vez que o verdadeiro tem a dimensão “de uma casinha de bonecas” onde não cabia nem a equipa nem o material.

Benoît Jacquot regressou ao palácio para uma sessão fotográfica. “É bizarro o fantasma de ali ter filmado”, reconhece. E a dada altura sentiu mesmo que o verdadeiro Versalhes era o do seu filme e não aquele onde estava novamente a passear.