quarta-feira, setembro 05, 2012
Philip K. Dick merecia melhor...
Estreou na semana passada entre nós uma nova adaptação ao cinema do mesmo conto que gerou o Desafio Total que Paul Verhoeven apresentou em 1990... Mas em nada esta nova versão chega aos calcanhares dessa outra (já de si apenas interessante), resultando mesmo numa das mais medíocres leituras de histórias de Philip K. Dick que alguma vez vimos no grande ecrã... Este texto foi publicado na edição de 31 de agosto do DN com o título 'Conto de Philip K. Dick tem segunda adaptação'.
Algures no final do nosso século, a humanidade está reduzida a duas zonas habitáveis no globo. Uma corresponde, mais coisa, menos coisa, ao Reino Unido e arredores. A outra, nos antípodas, fica na Austrália (a “colónia”, como lhe chamam). Uma guerra global e a devastação química deram conta do resto. Todos dias, há quem vá de um ao outro canto do mundo num elevador que corta o planeta ao meio e, em 17 minutos, sai-se do outro lado. Até aqui soa a coisa nova... Mas um dos passageiros habituais chama-se Douglas Quaid e, no dia em que resolve ir a um banco de memórias comprar uma experiência de entretenimento, algo desperta recordações da sua vida passada que alguém tentara esconder de si mesmo... Soa a familiar? Soa sim, se é que em tempos viu o filme Desafio Total (1990) de Paul Verhoeven (com Arnold Schwarzenegger como protagonista). Ou, mais ainda, se leu o conto de Philip K. Dick que na verdade está na génese de tudo isto.
Novamente sob o título Desafio Total, o filme de Len Wiseman (o mesmo de Die Hard 4) é, mais que apenas uma aventura de ficção científica, um filme de ação, novamente com o conto We Can Remember It for You Wholesale (originalmente publicado em 1966) como fonte de inspiração. Há elementos de familiaridade com a abordagem ao conto que vimos no filme de Verhoeven. E a narrativa segue caminhos semelhantes: o agente que muda de campo, a confusão entre o real e o virtual, a tensão entre opressores e oprimidos... Mas ao desviar a ação de Marte (que falha de timing, agora que a Curiosity por lá anda!) para uma Terra devastada pela guerra o filme incorre no primeiro de uma série de tropeções que acabam por reduzir as suas potenciais boas ideias a um sem-fim de persiguições, tiros, pancada, soluções à jogo de computador e muitos efeitos especiais. E, na verdade, muito pouco mais.
O cenário marciano vinha do conto de Philip K. Dick e Verhoeven explorou-o de forma a potenciar a narrativa com valor acrescentado de perigo. De resto, a atmosfera rarefeita do planeta vermelho representa uma fonte de preocupação mais convincente que os efeitos da destruição química da Terra. Há alturas em que, olhando para o ecrã, tentamos entender como sobrevive Londres, de belo céu limpo, aos gases tóxicos que inviabilizaram a vida até mesmo não muito longe dali? Deixou de haver correntes atmosféricas e ventos?
Com Colin Farrell no papel de Douglas Quaid, Kate Beckinsale como Lori (a sua mulher) e Jessica Biel como Melina (a resistente), o Desafio Total de 2012 não só não segue algumas das premissas do conto de Philip K. Dick que uma vez mais ficaram por explorar (em concreto a ideia da possível invasão alienígena) como reduz os jogos perturbantes entre as noções de memória real e virtual do texto original a um mero gatilho narrativo para justificar cenas de luta e correrias entre o trânsito urbano (que até lembra o de O Quinto Elemento de Besson). Deixando também por explorar o piscar de olho às ruas cheias de gente desencantada (ao jeito da que vemos no Blade Runner de Ridley Scott) que passa pelo ecrã, mas não terá cativado quem pensou este filme.