1. É interessante observar a multiplicação desta imagem pela Internet. Trata-se de uma fotografia do primeiro-ministro, com a mulher, assistindo ao concerto de Paulo de Carvalho no Tivoli (Lisboa, 7 Set.) – foi obtida por João Miguel Rodrigues e publicada pelo Correio da Manhã.
2. Embora correndo o risco de simplificar alguns comentários sobre a imagem (em qualquer caso, não do Correio da Manhã que, creio, se limitou a publicar a fotografia), julgo que não será exagero considerar que, na sua esmagadora maioria, tais comentários propõem uma interpretação moral muito precisa: depois de, poucas horas antes, ter anunciado ao país mais um violento pacote de medidas de austeridade, Pedro Passos Coelho terá dado provas de uma chocante indiferença pela gravidade da conjuntura portuguesa, optando por... divertir-se.
3. Vale a pena discutir tal asserção, quanto mais não seja em função de uma hipótese de pura aritmética moral (ou susceptível de arrastar outra moral). A saber: em que medida é que a ausência de Passos Coelho do concerto do Tivoli reflectiria um maior empenho político ou uma mais digna dedicação aos problemas do país?
4. Como é óbvio, tal pergunta corre o risco de não fazer mais do que relançar a questão clássica do "ser" e do "parecer" – a Passos Coelho não bastaria empenhar-se em resolver os problemas do país, necessitaria também de parecer que se empenha. E, pelos vistos, assistir a um espectáculo de Paulo de Carvalho não é uma boa aparência.
5. Claro que há uma maneira de enredar tudo isto em banais valorações políticas, desembocando sempre no mesmo esquematismo: de um lado aquilo que seria a leviandade de Passos Coelho, do outro o inegável mal-estar social gerado pelas medidas de redução salarial deste governo, aliás postas em causa por muitas personalidades do próprio partido maioritário (escute-se a contundência com que Marcelo Rebelo de Sousa comentou a "impreparação" do primeiro-ministro).
6. Acontece que essa visão política (banalmente política, insisto) passa ao lado, como sempre, da questão fundamental que aqui emerge. A saber: como vivemos com as imagens? Mais do que isso: em Portugal, 2012, que identidade se atribui, por regra, a uma imagem?
7. A resposta é simples, assustadoramente simples: em Portugal, triunfou um entendimento público das imagens – em particular das imagens de figuras públicas – que se esgota numa lógica de denúncia ou insinuação. É uma ideologia importada das vertentes mais sinistras da imprensa cor-de-rosa: uma imagem valeria apenas pelo modo como pode sustentar um qualquer discurso de difamação daquele, ou daquela, que nela se expõe. Uma estrela de cinema em topless? Passos Coelho no Tivoli? Os discursos que se colam às imagens são estruturalmente idênticos: o fotografado é "suspeito" de estar a fazer o que não lhe fica bem, não devia fazer ou, muitas vezes, apenas o que "justifica" algumas observações de medíocre chacota.
8. É um fenómeno transversal, não tenhamos dúvida. E não se julgue que resulta, tal como neste caso, apenas da proximidade temporal de dois eventos (o discurso de Passos Coelho e a sua presença no Tivoli). Ainda há poucos meses, ocorreu algo semelhante com uma "escandalosa" imagem de José Sócrates a almoçar no restaurante de um hotel "de 5 estrelas" – o simples facto de lá estar foi transformado num novelo de suspeições que remetia para os tempos da sua governação e que, suspostamente, a imagem autorizava. Na prática, pode estar a começar com Passos Coelho exactamente o mesmo vergonhoso processo "informativo" que se construiu em torno de José Sócrates enquanto primeiro-ministro: a problematização (por certo importante, necessária, inquieta ou mesmo inquietante) das suas políticas vai dando lugar à instalação de um imaginário "pitoresco" de degradação pública.
9. Uma boa alma poderá até sugerir (com total pertinência política, acrescente-se) que o primeiro-ministro estava no Tivoli a reconhecer também a importância simbólica de um cantor que, de facto, tem o seu nome inscrito na história e na mitologia de Portugal. O certo é que, nesta conjuntura, todas as componentes simbólicas, incluindo as patrióticas, se apresentam violentamente degradadas – somos convocados para olhar para uma imagem como um crime potencial: qual é a "culpa" dos que estão na imagem?
10. Infelizmente, nada disto tem a ver com a discussão das políticas de Passos Coelho (como não tinha a ver com as de José Sócrates), mas apenas com o triunfo de uma cultura da fulanização que, ironicamente, teve um momento sintomático na infeliz intervenção do próprio Passos Coelho, no Facebook, comentando a nova austeridade "como cidadão e como pai" (ouça-se também, a esse propósito, a referência de Marcelo Rebelo de Sousa aos efeitos desastrosos do Facebook na vida política em Portugal). O que está a acontecer é de uma natureza bem diversa, tendo a ver com uma relação de histeria persecutória com as imagens e através das imagens – em última instância, assiste-se à apoteose da intolerância, explícita ou velada, perante o discurso do outro.
NOTA: O facto de o primeiro-ministro se ter ido divertir "indevidamente", como muitos consideraram, suscita um paralelismo televisivo que vale a pena referir – sobretudo quando a agitação em torno do "serviço público" de televisão mascara um enorme vazio de reflexão sobre o papel simbólico e educativo das televisões numa sociedade democrática.
Assim, durante os meses de Verão, em nome das "férias" e do "divertimento", as televisões multiplicaram programas e mensagens absolutamente degradantes, não só exaltando a estupidez de uma miserável cultura "pimba", como também promovendo todos os dias, horas e horas a fio, imagens de obrigatória felicidade de um povo sempre encenado através do mais obsceno paternalismo. Curiosamente, tais "diversões" não geraram nenhuma vaga de indignação...
Para as direitas (que têm medo de tais questões) e para as esquerdas (que gostam de se confundir com o bem absoluto), eis um sugestivo tema de reflexão: porque é que um primeiro ministro no Tivoli, a ouvir Paulo de Carvalho, pode ser para alguns um escândalo nacional, ao mesmo tempo que se mantém um silêncio global (nada político) sobre a pornografia populista de muitos programas televisivos de "entretenimento"?
Assim, durante os meses de Verão, em nome das "férias" e do "divertimento", as televisões multiplicaram programas e mensagens absolutamente degradantes, não só exaltando a estupidez de uma miserável cultura "pimba", como também promovendo todos os dias, horas e horas a fio, imagens de obrigatória felicidade de um povo sempre encenado através do mais obsceno paternalismo. Curiosamente, tais "diversões" não geraram nenhuma vaga de indignação...
Para as direitas (que têm medo de tais questões) e para as esquerdas (que gostam de se confundir com o bem absoluto), eis um sugestivo tema de reflexão: porque é que um primeiro ministro no Tivoli, a ouvir Paulo de Carvalho, pode ser para alguns um escândalo nacional, ao mesmo tempo que se mantém um silêncio global (nada político) sobre a pornografia populista de muitos programas televisivos de "entretenimento"?