1. Infelizmente, não era difícil de prever: a queda anunciada de Passos Coelho.
2. Os tempos não são de sensatez, muito menos de gosto de pensar. Em qualquer caso, permito-me recordar que não se trata, neste caso específico, de analisar comportamentos políticos ou medidas governamentais. Nem se trata, ainda menos, de escamotear que a sociedade portuguesa vive um dramático momento histórico em que, creio eu, políticas e políticos de direita e de esquerda partilham responsabilidades (sublinho que a palavra responsabilidade nos convoca para a gravidade dos problemas e também para a necessidade de tentar encontrar discursos em que a contundência não seja inimiga do sentido construtivo, nada tendo, por isso mesmo, nada a ver com a histeria das "culpas" que se gritam em muitos debates televisivos).
3. Trata-se, isso sim, de confirmar uma triste realidade: a queda anunciada de Passos Coelho confunde-se com a sua queda mediática — e, em particular, televisiva.
4. Na prática, assistimos a um fenómeno cíclico que, pelos vistos, tomou conta da sociedade portuguesa (com mais ou menos "cauções" das chamadas redes sociais): vivemos, assim, num sistema de alternância euforia/apocalipse que faz com representemos a nossa existência (social, hélas!) como uma paisagem na fronteira de um paraíso feito de telemóveis e exuberantes anúncios de cerveja... ou então como um inferno quotidiano a que, como espectadores, temos de nos submeter.
5. Observe-se a triste exploração (televisiva, et pour cause...) de um episódio irrelevante com um segurança que insistiu em não ser filmado por uma câmara de televisão. Será que passámos a viver num país em que alguém acredita que um primeiro-ministro (português ou de qualquer outra origem) deve ter seguranças que sorriem estupidamente para as câmaras, porventura deixando-se fotografar com um copo de whisky na mão à maneira dos patéticos "famosos" que todos os dias nos impingem em sinistros programas televisivos e revistas "sociais"? Desgraçadamente, o episódio acaba por ser empolado de forma obscena e demagógica, mais parecendo que, subitamente, tínhamos passado de uma democracia (certamente imperfeita e contraditória) para uma ditadura com PIDE, perseguições políticas, torturas e orgulhoso isolamento internacional.
6. Não, o que está em causa não é o direito à expressão seja de quem for. O que está em causa é a transformação da vida política numa guerra de imagens anedóticas e soundbytes simplistas, cujo único princípio ideológico consiste em dividir o mundo em duas facções ridículas: o "povo" que grita e que, só porque grita, arrastaria uma razão que ninguém se deve atrever a pensar nos seus fundamentos e incidências... e os "políticos" que, por causa dos problemas muito reais que vivemos, só podem ser caricatos, malignos ou corruptos — a história repete-se, e não como farsa: a tragédia mediática em que José Sócrates foi difamado para além de qualquer pingo de humanidade está a reproduzir-se na tragédia mediática através da qual, hora após hora, Passos Coelho é empurrado para o papel do monstro de Frankenstein perseguido pela multidão ululante (e, como é fácil perceber, já passámos para além da metáfora).
7. Neste processo — e exactamente como o fez o Partido Socialista durante a governação de José Sócrates —, é chocante a incapacidade do Partido Social Democrata esboçar um discreto, mas firme, gesto contra a decomposição de todo um país através do arraial do populismo televisivo. Em boa verdade, creio que a classe política (partidos do governo & partidos da oposição) já há muito devia ter assumido uma posição de firmeza — quer dizer, de inteligência — face a um estado de coisas em que cada cidadão está constantemente a ser empurrado para pensar a "preto e branco", "pró" ou "contra", escolhendo como personagens diabólicas de hoje as virgens redentoras de ontem (ou o contrário).
8. A classe política portuguesa parece não compreender que este processo de degradação televisiva da imagem de Passos Coelho, tal como o de José Sócrates, atinge muito para além do partido ou partidos que estão no governo — a sua lógica bélica restringe, dia após dia, o espaço de manobra para o próprio trabalho político de todos.
9. Pergunta dramática e inquietante: será que a maioria dos membros da classe política apenas existe em função do efeito televisivo dos seus comportamentos?
9. Pergunta dramática e inquietante: será que a maioria dos membros da classe política apenas existe em função do efeito televisivo dos seus comportamentos?
10. Sabemos que lembrar tudo isto, aqui e agora, facilmente é descartado pelos demagogos de serviço como prova de um permanente discurso "contra a televisão". Em boa verdade, é exactamente o contrário que está em jogo: a televisão é qualquer coisa de demasiado importante, e demasiado fascinante, para a deixarmos ser ocupada por crianças mal educadas que se divertem a desamurrar a casa ou, pior ainda, a esgaravatar as suas fissuras, ansiando por vê-la ruir — não há, no tempo que vivemos, questão mais dramaticamente social.