Continuamos a publicação de um texto que assinala os 40 anos da edição de 'The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The Spiders' de David Bowie e que procura verificar que impacte teve o disco no panorama social e artístico do seu tempo. O artigo foi originalmente publicado a 30 de junho de 2012 no suplemento Q. do DN com o título 'Como um 'alien' mudou Bowie e ajudou a transformar a sociedade.
Em janeiro de 1972 David Bowie contava ainda com o episódio Space Oddity, de 1969, como o mais bem sucedido da sua carreira até então. Hunky Dory, lançado em dezembro de 1971, tinha desempenhado uma carreira bem discreta nas tabelas de vendas. O single Changes (1971) nem sequer entrou na lista dos mais vendidos nas semanas que se seguiram ao seu lançamento.
Poucas semanas depois de terminadas as sessões de Hunky Dory, a mesma equipa regressava a estúdio. “Não houve diferenças”, confirma Ken Scott ao DN. “Era como uma continuação. Ele disse-me que esse ia ser um álbum mais rock'n'roll e foi só isso mesmo. E trabalhámos da mesma maneira que tínhamos feito o Hunky Dory. Mas pelo material dava para ver que seria algo mais sombrio... Toda a personagem do Ziggy não foi sequer discutida. Para ser honesto nem me lembro do aspeto que ele tinha quando começámos a trabalhar no Ziggy. É um pouco como quando vemos os nossos filhos a crescer. Vemo-los todos os dias e não vamos notando as diferenças da mesma forma que o nota quem os vê só de vez em quando”. Segundo o mesmo Ken Scott, citado em Strange Fascination “ a parte Ziggy da criação chegou quando Bowie encontrou uma loja de roupa com esse nome em Londres. A ligação semântica a Iggy [Pop] (e à modelo Twiggy) fez com que o nome parecesse ainda mais apropriado”. (22)
Bowie não se decidiu, pelos vistos, a criar um álbum conceptual. Passou algum tempo a escrever, a fazer maquetes e a gravar. E o conceito, que acabaria por moldar Ziggy Stardust chega já durante as sessões. Nicholas Pegg, autor de The Complete David Bowie, defende que “o alinhamento (de trabalho) em dezembro de 1971 sugere que o conceito de Ziggy Stardust foi uma ideia de ultima hora surgida e trabalhada após o aparecimento de Starman e Rock'n'Roll Suicide”. (23) E Buckley acrescenta que, uma vez com o conceito de Ziggy definido, Bowie “afinou-o, escreveu mais algumas canções, mesmo em cima da hora, e uma lenda rock nasceu – de uma forma mais acidental que o que a história do rock pareceria pedir”. (24) E que conceito era esse? “Um poeta visionário que, com alguma ajuda extra-terrestre, se transforma numa estrela rock num mundo à beira do apocalipse”. (25)
E então segue-se o que David Buclkey descreve como o “ato de prestidigitação (26): a 22 de janeiro de 1972, em entrevista a Michael Watts, do jornal Melody Maker, Bowie afirma que é homossexual. Convém aqui lembrar que na altura era um homem casado e ainda recentemente tinha tido o seu primeiro filho, Zowie (o hoje reconhecido realizador Duncan Jones). A entrevista deu brado. E teve consequências, não apenas na carreira de Bowie, mas na própria sociedade.
Para Buckley, Michael Watts, que descreve como sendo um jornalista heterossexual de classe média, “fez mais para o despontar mundial do fenómeno Bowie que qualquer outra coisa”. O autor reconhece que “o brilho da música também importava”, mas lembra que até essa altura Bowie tinha sido uma figura praticamente “invisível”. Watts, explica, terá visto em Bowie “uma figura à semelhança de um Dylan, que podia construir toda uma obra capaz de confrontar o legado deste outro autor”. O jornalista que assinou essa peça entretanto feita momento mítico, “manteve-se impressionado com o conteúdo intelectual da obra de Bowie durante o resto dos anos 70 e reconheceu que ele não era apenas um peso-pesado, mas a melhor aposta para encontrar um novo ícone rock”. E, como reforça em Strange Fascination, tinha razão. (27)
Mas nem tudo foi pacífico. Em Strange Fascination, Tony Visconti afirma que Bowie “nunca foi camp”. O produtor, que com ele trabalhou em vários discos, defende antes que “estava a ser mais flamboyant e teatral que a fazer um statement sexual”. Defende que, “subitamente”, ter-se-á apercebido “que podia fazer algo chocante e ser depois notado. Foi ignorado durante anos até que apareceu nas primeiras páginas dos tablóides com um vestido. Foi uma jogada inteligente”, defende. (28) Para Ken Scott, o manager Tony DeFries sabia que esta revelação nos media seria um forte argumento comercial: “A ideia da bissexualidade era perfeita. E aconteceu suficientemente cedo na sua carreira para a alimentar aio contrário de Elton John que, quando falou publicamente da sua sexualidade, ia já tão lançado na sua carreira que perdeu algum do seu público”. (29) Já John Gill refere Bowie no livro Queer Noises como sendo “um homofóbico de armário que manipula cinicamente a sua sexualidade para impressionar um critico de rock straight como Mike Watts. Mas a ideia de um David queer teve tamanha força ao ponto de fazer muitos outros sair do armário”.
A “revelação” de Bowie ao Melody Maker chega, dois anos e meio dos motins de Stonewall em Nova Iorque (que desencadearam uma etapa de luta pelos direitos LGBT (30)), num tempo de eclosão e disseminação de movimentos ativistas. Nick Stevenson, em Fame, Sound and Vision, explica que havia afinidades entre a agenda política e as manifestações dos movimentos gay que então ganhavam visibilidade e as imagens que conhecemos do Bowie deste tempo. Um manifesto da Gay Liberation Front publicado em 1971 explicava que um dos seus objetivos era o de fazer um confronto com os modos como os homossexuais foram alvos de estereótipos e opressão. Lia-se ali que os homossexuais eram “caracterziados como escandalosos, pervertidos, obscenos, monstros sexuais selvagens, degenerados patéticos assombrados e amaldiçoados, ao mesmo tempo que a verdade é velada sob uma conspiração de silêncio”. (31). Para Nick Stevenson observa no seu livro como alguns signos culturais foram de grande importância neste movimento social. Em algumas das suas manifestações, os ativistas do GLF surgiam com roupas femininas, entrando depois em bares e pedindo bebidas. “É notável aqui a ideia da subversão da imagem e a utilização de simbologias para demolir os modos como a sociedade dominante construíra uma imagem negativa dos homossexuais” (32). E neste quadro, defende, Ziggy Stardust teve grande impacto. E como? “Quebrando os discursos tradicionais da cultura rock e da heterossexualidade” e chamando atenção para uma atitude “performativa”. Tudo isto, jogando com armas e ferramentas da mesma cultura rock: os discos, as canções, as poses, os concertos.
Nick Pegg, na sua “enciclopédia” dedicada a Bowie, explica, na entrada referente ao álbum, que “os assuntos tabu sempre exerceram uma atração sobre o apetite por causar sensação de David Bowie, e o seu desejo de operar fora dos sistemas tradicionais naturalmente atraíram-no para a sub-cultura homossexual”. Pegg cita então o próprio Bowie: “Gostei da ideia daqueles clubes e daquelas pessoas e de tudo sobre ser algo que as pessoas não conhecem”, como explicou mais tarde. “Isso atraiu-me muito. Era como um outro mundo no qual que queria entrar”.
Pegg vinca que, contudo, e apesar de todas estas opções, imagens, palavras e atitudes, “há indicações por várias fontes de que o período Ziggy foi de energética heterossexualidade [de Bowie] a qualquer oportunidade”. E explica, recolhendo exemplos de várias entrevistas, que nos anos seguintes as observações de Bowie sobre este assunto foram “inconstantes”. E dá exemplos... “'Sim, sou bissexual', afirmou em 1976, para responder alguns anos depois numa entrevista 'Bissexual? Oh, não. De todo. Isso foi uma mentira. Deram-me a imagem e fiquei com ela muito bem durante anos'”. Na Nova Zelândia em 1978 “disse um programa 'Sou bissexual, essa foi uma afirmação genuína'.” E em 1983, “ao lançar-se numa carreira para o grande mercado (…) estava desejoso de retratar a antiga declaração a quem o ouvisse – sobretudo na América. Disse à Time que tinha sido um 'erro estratégico' e à Rolling Stone afirmou que fora 'o maior erro que alguma vez tinha feito'”. Mas quando “confrontado com a questão pela Smash Hits em 1987 sublinhou toda a saga com humor e autorizou que se imprimisse: 'Hahah. Não devem acreditar em tudo o que lêem' (33)”. E esta última parece, de longe, a mais séria das respostas.
De resto, para Nicholas Pegg, a questão da sua orientação sexual é “esplendidamente irrelevante”. Na entrevista ao Melody Maker em 1972 na base de todo este “caso”, defende que o Bowie estava então a fazer era “abraçar o espírito camp (34) segundo a sua mais verdadeira definição, que não tem a ver com sexo, mas sim com a elevação de uma estética acima do meramente prático”. Assim, conclui, “o hábito incansável de editar a sua personalidade, aparência, vocabulário e referencias para apresentar uma sucessão de novos Bowies, cada qual desenhado para o efeito e o momento, segue o manifesto camp estabelecido por Oscar Wilde e Susan Sontag”. O camp, acrescenta, “dotou Bowie/Ziggy de um ar útil de distanciamento irónico, colocando a imagem recebida da estrela num patamar acima da realidade mundana das sessões de estúdio, dos autocarros (tour buses) e da mulher e do bebé em casa”. (35)
22 - in Strange Fascination, de David Buckley ( Virgin Books, 1999), pág 114
23 – in The Complete David Bowie (Reynolds & Hearn, edição revista em 2004), pág 276
24 - in Strange Fascination, de David Buckley ( Virgin Books, 1999), pág 123
25 – in The Complete David Bowie (Reynolds & Hearn, edição revista em 2004), pág 272
26 - in Strange Fascination, de David Buckley ( Virgin Books, 1999), pág 109
27 – ibidem, pág 110
28 – ibidem, pág 111
29 – ibidem
30 – LGBT – iniciais para lésbicas, gays, bisexuais e trangénero
31 - London Gay Liberation Front Manifesto 1971: 119
32 – in Sound and Vision, de Nick Stevenson (Polity, 2006), pág 61
33 - in The Complete David Bowie (Reynolds & Hearn, edição revista em 2004), pág 278
34 – Camp – Conceito estético que teve em Susan Sontag uma das mais marcantes reflexões no texto 'Notes on Camp'. Envolve a exploração de elementos como o artifício, a frivolidade ou o excesso.
35 - in The Complete David Bowie (Reynolds & Hearn, edição revista em 2004), pág 278