MARK ROTHKO Red on Maroon 1959 |
Afinal, de que falamos quando falamos de Morangos com Açúcar? Da redenção para daqui a meio século? Ou do horror contemporâneo? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Setembro), com o título '"Morangos" do nosso presente'.
Na revista de televisão do DN, Hugo de Sousa, realizador de Morangos com Açúcar – O Filme, deixou uma afirmação que dá que pensar: segundo ele, “daqui a 50 anos”, ainda se há-de falar dos Morangos. Eis uma desconcertante profecia, já que transfere para um futuro distante aquilo que, creio eu, seria mais interessante tentar problematizar no presente. A saber: o aqui e agora do cinema português em que Morangos, é um facto, se distingue pelo número de espectadores (já para além dos 200 mil) que consegue mobilizar.
Ora, desde os quadros de Mark Rothko para a Seagram até à invenção dos copos de plástico, são muitas e muito variadas as memórias que resistem ao tempo. E, salvo melhor opinião, a sua duração não será totalmente esclarecedora sobre as respectivas características. Um pouco como quando se celebra o facto de uma eficaz campanha de marketing conseguir encher o Terreiro do Paço com milhares de pessoas a ouvir Tony Carreira... A proeza, por certo interessante para as empresas envolvidas, não consegue rasurar a cruel verdade: toda a obra musical de Tony Carreira empalidece face a uma simples linha escrita por Bob Dylan (How does it feel...).
Ainda assim, por mim, defendo uma breve trégua sobre o horror estético e temático dos Morangos com Açúcar, para que perguntemos: que cinema português se está a construir através do impacto de um objecto com estas características? Infelizmente, as respostas são mais assustadoras que o próprio filme.
Por duas razões muito concretas. A primeira decorre, precisamente, do triunfo de uma ideologia de marketing, e apenas de marketing, que nos massacra com a ideia (?) segundo a qual gerar multidões é qualquer coisa de redentor e inquestionável: em boa verdade, a história ensina-nos que, desde o populismo político até à comercialização de pastilhas elásticas, a noção de “multidão” não iliba nenhuma actividade das suas responsabilidades sociais (nomeadamente da responsabilidade de injectar nos mais jovens uma visão paternalista e ultra-simplista dos seus próprios comportamentos). A segunda razão tem a ver com um problema de fundo que sucessivas políticas económicas, televisivas e culturais se têm dado ao luxo de adiar. A saber: como consolidar em Portugal uma estrutura mínima de produção que viabilize um cinema português financeiramente saudável e tão plural quanto possível?
Escusado será dizer que tudo isto pode envolver uma chantagem que, historicamente, bem conhecemos: a de atribuir a um qualquer filme português (de Hugo de Sousa ou Manoel de Oliveira) a missão de “salvar” o cinema português... Não é disso que se trata, como não se trata de sugerir que a “crítica” só defende os filmes que não têm espectadores... Que essa estupidez ainda tenha um imenso poder ideológico, eis o que diz bem da qualidade média do debate do cinema em Portugal.