Mais do que nunca, importa lembrar que aquilo que alguns, hipocritamente, chamam "entretenimento" não está fora da cultura. Muito pelo contrário: todas as formas de comunicação são elementos da dinâmica cultural — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 Setembro), com o título 'Morangos, RTP e... o resto'.
Vivemos um tempo de risonha hipocrisia artística. Veja-se o paternalismo da campanha de Morangos com Açúcar: depois da série, o filme seria uma maneira de promover os jovens actores... Espantoso, de facto! Num país com tantas carências na educação para as artes, encena-se (?) um grupo de jovens (por certo, com talento, não é isso que está em causa) a imitar a retórica dos adultos nas telenovelas e promove-se tudo, em tom muito sério, como uma espécie de redenção artística.
A conjuntura apela ao desespero da caricatura. Assim, depois de pelo menos duas décadas de metódica degradação populista do espaço televisivo, nasceu das pedras da calçada uma avalancha de gente preocupada com os destinos da RTP, incluindo alguns políticos que nunca ligaram ao assunto. António Borges foi o santo milagreiro: com meia dúzia de palavras displicentes, conseguiu consagrar o reconhecimento de uma verdade rudimentar, regularmente enunciada por alguns críticos de televisão nos desertos do nosso pensamento democrático. A saber: que a televisão (e, em particular, a RTP) é uma questão absolutamente prioritária na conjuntura político-cultural portuguesa.
Há em tudo isto uma drástica dimensão educacional. Veja-se como a mesma promoção de Morangos com Açúcar celebra o respectivo número de espectadores. Valor incontornável, sem dúvida. Mas neste caso utilizado de forma profundamente demagógica, como se fosse uma “prova real”... não se sabe bem de quê. Importa repetir pela milionésima vez que uma coisa é defender políticas de promoção de todo (repito: todo) o cinema português; outra, bem diferente, é sugerir que algo adquire dignidade artística apenas porque, qual amontoado de cadáveres em acidente na auto-estrada, fica muita gente parada a olhar... O facto cirúrgico é este: não se pode esperar que um público educado por Morangos com Açúcar mostre o mínimo interesse em ver, por exemplo, Oslo, 31 de Agosto.
Que é Oslo, 31 de Agosto? Pois bem, um belo filme norueguês, estreado no mesmo dia de Morangos com Açúcar, que não passou em nenhum noticiário televisivo. Tem a ver com quê? O ser ou não ser jovem, a dificuldade de amar e a dependência de drogas. E tem alguns actores sem tiques publicitários, a começar pelo brilhante Anders Danielsen Lie.
Oslo, 31 de Agosto vai ser um falhanço comercial? É o mais provável. Ao que dirão os responsáveis por Morangos com Açúcar: as performances nas bilheteiras desenham uma fronteira intransponível. E eu estou de acordo com eles. Acrescentado apenas que o comércio é a primeiríssima forma de cultura. Na sua inquestionável inteligência, esses mesmos responsáveis sabem que Morangos com Açúcar existe como um perverso ministério da cultura, com um poder simbólico superior ao de qualquer instituição educacional. Meus senhores, eis a crua verdade: os grandes agentes culturais são vocês.