Esta é Kiernan Shipka no papel de Sally, a filha de Don Draper, em Mad Men: um exemplo admirável de abordagem do espaço das crianças — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 Setembro), com o título 'Como filmar um olhar de criança'.
Sally Draper, interpretada pela brilhante Kiernan Shipka (actualmente com 12 anos), é uma das personagens mais desconcertantes da série televisiva Mad Men. Filha de Don e Betty Draper (Jon Hamm e January Jones), separados na actual quinta temporada (a passar na RTP2), há nela uma bizarra e paradoxal energia: por um lado, sendo ainda uma criança, ocupa um lugar “marginal” aos problemas dos adultos; por outro lado, a sua inteligência e perspicácia leva-a a decifrar muitas das máscaras que os mais velhos usam para sobreviver na selva profissional da publicidade ou para manter os frágeis equilíbrios dos seus universos conjugais e familiares.
Tanto bastaria para a definir como inequivocamente exterior a esse cliché muito televisivo que faz com que as crianças (e adolescentes) sejam quase sempre expostas como marionetas da própria ficção: são figuras decorativas que parecem desprovidas de qualquer forma de sensibilidade humana ou, então, entram nas histórias como banais matérias instrumentais dos adultos e respectivos discursos.
O mais difícil, há que reconhecê-lo, é fazer passar a noção de que a personagem da criança não tem de ser um “símbolo” obrigatório da sua própria condição etária (impostura corrente no espaço das telenovelas), mas uma personagem que se distingue também por um olhar. Dito de outro modo: o desafio consiste em filmar a criança como alguém que, com mais ou menos ilusões, vazios ou equívocos, elabora o seu próprio ponto de vista sobre as relações em que está inserida.
Num dos episódios da corrente temporada (nº 7, “At the Codfish Ball”), Sally acompanha o pai numa recepção oficial, acabando por assistir, nos bastidores, a um acto sexual entre um homem e uma mulher cujos cônjuges permanecem, entretanto, no salão onde decorre o evento. O episódio termina com Sally a telefonar a um amigo a quem, em qualquer caso, não conta o que viu. Quando o amigo lhe pergunta “como está Nova Iorque”, ela responde com uma simples palavra que encerra o episódio: “Suja.” O que é admirável neste desenlace não é o “simbolismo” nem a “pedagogia”, mas a verdade visceral que emana de Sally: ela não só observa metodicamente o mundo à sua volta como tem uma visão moral que, na sua contundência, é estranha ao laxismo de quase todas as personagens adultas.
Não se trata, entenda-se, de dizer que Mad Men dá “razão” às crianças. Aliás, aplicando a velha fórmula de Jean Renoir, poderemos dizer que a série procura iluminar as “razões”, mesmo as mais cruéis ou insensatas, de todos os seres humanos. Trata-se antes de encenar as crianças como personagens vivas e contraditórias (Sally é também, por vezes, um vulcão de egoísmo), no mesmo plano dramático de todas as outras. Infelizmente, esse risco estético e ético é coisa cada vez mais rara no conformismo narrativo dos modelos televisivos.