O 35º álbum de estúdio de Bob Dylan chama-se Tempest: uma obra-prima de intimidade que recusa quaisquer adornos "modernistas" — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 Setembro), com o título 'Isto não é Shakespeare'.
Sabemos que o artista é um fingidor. A nossa admiração começa mesmo no reconhecimento do seu assumido e exposto artifício. Sabemos também que o fingimento pode envolver uma verdade radical, devastadora. Aos 71 anos, não esperaríamos ouvir Bob Dylan a renegar a sua lenda de reserva e secretismo, para se por a cantar disparates “confessionais” à maneira de um qualquer “famoso” suficientemente incauto para se abrir nas páginas cor-de-rosa da imprensa... E, no entanto, o seu 35º álbum de estúdio, Tempest, é uma obra-prima de intimidade.
Este é, afinal, um objecto em que um dos maiores poetas da música popular contemporânea (em rigor: um dos maiores poetas contemporâneos) nos fala de “anos longos e perdidos” (Long and Wasted Years). Contemplando o amor perdido, reconhece que “passou tanto tempo” desde que “os nossos corações foram verdadeiros” (It’s been such a long long time / Since we loved each other and our hearts were true).
E, no entanto, Tempest está longe de nos tocar como uma obra de desespero ou desistência. Muito pelo contrário: tomara muitos jovens “amorangados” que por aí andam, celebrando o “amor” e a “felicidade”, conseguirem um milésimo da intensidade emocional com que Dylan evoca a tragédia do Titanic (no tema título) ou celebra a memória de John Lennon (Roll on John).
Figura tutelar da história da música dos últimos 50 anos, Dylan faz, afinal, o que só um mestre pode e sabe fazer: não abdicar das forças do seu próprio património criativo (rock, folk, blues, etc.), recusando liminarmente qualquer hipótese de adornos “modernistas”. Por alguma razão, ele lembrou aos mais precipitados que o título do seu disco (Tempest) não é o mesmo do da derradeira peça de Shakespeare (The Tempest). Isto não é Shakespeare. Mas podia ser.