domingo, setembro 09, 2012

Cristiano Ronaldo e a nossa tristeza

JACKSON POLLOCK
Full Fathom Five
1947
As televisões bem podem proclamar prioridades "culturais", "nacionais" ou banalmente económicas... Na prática, o mundo é obrigado a parar por causa da tristeza de Cristiano Ronaldo. Este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Setembro), com o título 'Ronaldo anda triste...'.

A visão futebolística dominante continua a ser bem reveladora de todo um imaginário (televisivo e não só) que escolhe protagonistas, promove determinados valores e denigre outros. Ou seja: constrói uma visão do mundo que envolve uma muito concreta intervenção cultural. Porque a cultura é isso mesmo: não uns assépticos jogos florais em que escolhemos o “bem” contra o “mal”, mas uma guerra constante entre valores.
Assim, desde logo, há protagonistas que não têm direito a ser... protagonistas. Veja-se (e ouça-se!) o rol de lamentações que acompanhou a vitória do Rio Ave em Alvalade. Aliás, em boa verdade, parecia que tinha sido um jogo sem vencedor: a única notícia palpável era que... o Sporting tinha perdido. Mais do que uma notícia: era o pânico do apocalipse!
Permito-me sugerir, por isso, a hipótese de uma interessantíssima abordagem jornalística: por que não perguntar aos clubes “pequenos” o que pensam do facto de desaparecerem das notícias cada vez que cometem o erro de ganhar a um “grande”?
Entretanto, ficámos a saber que Cristiano Ronaldo anda triste... Que Nossa Senhora de Fátima nos acuda! Repare-se: nem sequer se trata de discutir os porquês de tanta tristeza. Incrível é o facto de, jornalisticamente, se considerar que tal estado de espírito justifica mais destaque, especulação e reflexão que qualquer grande obra artística produzida nas últimas décadas em Portugal. Habitamos, assim, uma paisagem de comunicação (?) em que se abrem consultórios de psicologia televisiva porque um profissional que ganha 10 milhões de euros por ano, coitado, entendeu por bem partilhar a sua avassaladora tristeza.
Daí as categorias cognitivas que nos dão a consumir: um velho reformado, com 200 euros por mês, dá sempre uma boa imagem de miséria pitoresca e bem disposta; um gestor que ganhe mais de 10 mil euros por mês pode ser inscrito, automaticamente, na categoria dos criminosos encapotados; enfim, somos convocados para partilhar as lágrimas amargas (?) de Cristiano Ronaldo. Sabem que mais? Dou-vos uma notícia em primeira mão: estou triste.