São raros os cineastas que retrataram o primeiro conflito mundial, a Grande Guerra, com a delicadeza e a energia simbólica de Steven Spielberg: Cavalo de Guerra é um filme a (re)descobrir – este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 Setembro), com o título 'A dimensão épica de Spielberg'.
Revejo Cavalo de Guerra, de Steven Spielberg, na sua magnífica edição em Blu-ray, e não posso deixar de pensar na mudança de valores (ou de paradigma, como agora se diz...) a que foi sujeita percepção do cinema de Hollywood. De facto, a idade dos “blockbusters”, curiosamente iniciada por um filme de Spielberg (Tubarão, 1975) foi ainda durante muito tempo uma paisagem de criadores perfeitamente identificados. E não estou apenas a falar das enormes diferenças que separam muitos filmes desses criadores (Spielberg, George Lucas, Tim Burton, etc.) da balbúrdia anónima dos gestores de efeitos especiais que, ano após ano, vão produzindo coisas infinitamente medíocres como Lanterna Verde ou Os Vingadores... Estou também a pensar numa diferença mais funda, todos os dias agravada por uma (des)informação, sintomaticamente de raiz televisiva, que passou a menosprezar a complexidade narrativa que o cinema pode envolver: o conhecimento dos filmes dos autores, “bons” ou “maus”, foi substituído pela exaltação provinciana das proezas tecnológicas de cada filme.
Conjuntura ambígua, sem dúvida. Apetece dizer: esquizofrénica. O caso de Spielberg é esclarecedor. Não foi ele que, com As Aventuras de Tintin – O Segredo do Licorne, extrapolou os limites correntes do 3D, mostrando (tal como Martin Scorsese, em A Invenção de Hugo, ou Wim Wenders, com Pina) que o formato pode ser muitíssimo mais do que um mero suplemento técnico para vender bilhetes mais caros? E não é também ele o cineasta que, ao realizar o admirável Cavalo de Guerra, nos mostra que a chamada reconstituição histórica (da Primeira Guerra Mundial), mesmo tirando partido dos novos recursos digitais, pode continuar a investir num elaborado gosto realista?
A importância simbólica de Cavalo de Guerra é tanto maior quanto desloca, ou melhor, recupera toda uma memória iconográfica da guerra que, no cinema americano, ficou sucessivamente presa das evocações do segundo conflito mundial e, depois, do envolvimento militar dos EUA no Vietname. Nesta perspectiva, e para além das escolhas temáticas, Spielberg assume-se como herdeiro muito directo dos grandes autores épicos dos primórdios de Hollywood, a começar por Cecil B. De Mille (1881-1959) e King Vidor (1894-1982): há nele um gosto pelo cinema como experiência “maior que a vida” que, hoje em dia, tantas vezes falta aos ruidosos espectáculos que confundem a ostentação digital com as intensidades emocionais de uma narrativa.
Infelizmente, uma das razões mais mesquinhas para o apagamento de Spielberg das “notícias” sobre cinema decorre das performances comerciais, apenas medianas, dos seus títulos mais recentes. Na verdade, assistimos ao triunfo de um pensamento (?) mediático que trata o cinema como uma conta corrente de milhões e cifrões... Vítima inevitável de tal contexto? O gosto cinéfilo, a aventura de descobrir um filme.