Esta é a primeira parte de um texto originalmente publicado na edição de 4 de agosto de 2012 do suplemento Q., com o título 'O Culto que Nasceu Quando a Lua se foi Embora'.
13 de setembro de 1999... Uma sucessão de reações em cadeia nos depósitos de detritos nucleares na face escura da Lua gera uma explosão sem precedentes que catapulta o satélite natural da Terra para lá da sua órbita, levando consigo para uma viagem pelo espaço profundo, e sem timoneiro nem leme, os mais de 300 habitantes de uma base lunar... Hoje sabemos que semelhante cataclismo não aconteceu, a Lua visitando-nos ainda, noite após noite, nos nossos céus. E na verdade, quando esta mesma “história” passou pela primeira vez pelos ecrãs de televisão, em 1975, era cenário que se encarava como exercício de ficção, sem projeção possível na realidade. Essa foi contudo a premissa que lançou as bases para uma série que se transformaria num dos maiores fenómenos de culto da ficção científica e que nasceu de um desafio lançado há precisamente 40 anos.
Foi em 1972 que, perante os resultados encorajadores da série de ficção científica UFO (1), a ITC Entertainment pede a Gerry (2) e Sylvia Anderson (3) que preparem uma segunda época de novos episódios. Narrativa e cenários são repensados e um considerável investimento é feito na criação de novos espaços e maquetes. Tanto que, sob uma decisão posterior de travar o processo, a alternativa a fechar o projeto na gaveta (sob ostensiva carteira de gastos) acaba por se transformar no desafio de criar uma nova série. E do trabalho de progressiva afinação de conceito e detalhes que se segue surge Space 1999 (que se estreará em Portugal como Espaço 1999).
Uma das premissas estruturais pedidas por Abe Mandell (diretor do escritório nova iorquino da ITC) para o desenvolvimento da série determinava que nenhum episódio poderia decorrer na Terra. E, como o próprio Gerry Anderson recorda no booklet que acompanha a edição em Blu-ray da primeira série de Espaço 1999, Abe terá deixado bem claro que queria que o produtor lhe telefonasse o mais depressa possível para lhe explicar “como é que seria impossível fazer um episódio na Terra”. Solução? Tirar a Lua da sua órbita... E a ideia avançou.
Com um elenco atento ora à necessidade de cativar audiências nos EUA – daí a contratação do casal Martin Landau (4) e Barbara Bain (5) – ora respeitar a alma inglesa da produção (Barry Morse (6) sendo aí uma figura fulcral) e, mais tarde, a presença da RAI como co-produtora (com uma série de atores italianos, sobretudo entre convidados e papéis secundários), Espaço 1999 teve uma gestação atribulada, chamando o trabalho de vários realizadores e argumentistas. A experiência de Gerry Anderson na criação de séries com importante presença de efeitos visuais (recorde-se que assinou antes criações como Fireball XL-5. Stingray ou os Thunderbirds) colocou-o num espaço privilegiado para o acompanhar dos trabalhos de uma equipa que criou a maquete da base lunar Alpha, das suas naves de serviço (Eagle) e dos mundos que os episódios depois visitariam. Entre os grandes feitos da direção artística da série conta-se o trabalho de design de interiores que não só confere às imagens uma noção de um futuro elegante e minimalista como permitia, através de um jogo de módulos de paredes e portas, criar uma variedade de soluções para as diferentes salas, multiplicando assim as potencialidades dos décors.
Desde cedo surgiram naturais comparações entre Espaço 1999 e Star Trek (entre nós O Caminho das Estrelas) (7), cuja série original havia sido apresentada entre 1966 e 1969. Essas afinidades são apontadas inclusivamente na The Encyclopedia of Science Fiction de John Clute e Peter Nicholls onde, referindo ambos como seguindo um formato em que há viajantes pela galáxia “visitando vários planetas e encontrando estranhas formas de vida”. Mas, continuam os autores, “onde as personagens de Star Trek viajam a bordo de uma nave espacial, o pessoal de Espaço 1999 faz a sua demanda interplanetária numa Lua em fuga, criando uma 'obrigação' que deverá ter causado muitas frustrações aos argumentistas” (8). Outra das evidentes afinidades da série aponta à memória (ainda recente) do filme 2001: Odisseia no Espaço (1968), de Stanley Kubrick, não apenas nas sequências vividas na superfície lunar como nas que acompanhamos na estação orbital em torno da terra e no vaivém que acompanhamos rumo à base lunar. Se tivermos ainda em conta que a chegada do homem à Lua (em julho de 1969) era ainda uma memória viva e que estava ainda vigente o projeto Apollo, da Nasa (9) quando decorreram em 1972 as primeiras reuniões das quais nasceria a ideia para a série, a Lua (e a ideia de uma base lunar), mais que uma atraente ideia de ficção científica, parecia destino afinal ao alcance da ciência.
1 – UFO – Série de ficção-científica criada por Gerry Anderson. Teve emissão original em 1970.
2 – Gerry Anderson (n. 1929) Produtor, argumentista e realizador, assinou várias séries envolvendo marionetas e usando um processo designado por supermarionation. São exemplo dessa etapa títulos como Fireball XL-5, Stingray, Thunderbirds ou Captain Scarlet. Entre as séries de imagem real foi o criador, entre outras, de UFO, The Protectors ou Espaço 1999
3 – Sylvia Anderson (n. 1927) Produtora, foi casada com Gerry Anderson entre 1962 e 75. Trabalhou, entre outras, na primeira época de Espaço 1999.
4 – Martin Landau (n. 1928) Ator norte-americano, interpretou o comandante Koenig em Espaço 1999. Nessa altura estava casado com Barbara Bain. Ganhou um Óscar pelo trabalho como Melhor Ator Secundário em Ed Wood (1994), de Tim Burton.
5 – Barbara Bain (n. 1931) Atriz norte-americana, interpretou a Dra. Helena Russell em Espaço 1999.
6 – Barry Morse (1918-2008) Ator anglo-canadiano, interpretou o papel do cientista Victor Bergman em Espaço 1999.
7 – Star Trek – Série televisiva criada por Gene Rodeneberry. Teve primeira vida no pequeno ecrã entre 1966 e 69. Mais tarde chegou ao cinema e gerou outras séries baseadas no mesmo universo.
8 – in The Encyclopedia of Science Fiction, de John Clute e Peter Nicholls