terça-feira, agosto 14, 2012

Forever Marker

Chris Marker deixa uma herança que não se gosta nos filmes: há no seu trabalho uma intransigente procura da justeza estética e ética do(s) realismo(s) — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 Agosto), com o título 'O pudor do realismo segundo Chris Marker'.

O recente falecimento de Chris Marker, a 29 de Julho (data do seu 91º aniversário), passou relativamente despercebido. Nada de surpreendente: o triunfo global do populismo televisivo tende a secundarizar o cinema, “naturalmente” esquecendo um criador que não pode ser descrito em função do cliché dos “efeitos especiais”...
Seja como for, importa também acrescentar que algo do apagamento de Marker, antes de ser um fenómeno mediático, decorre da sua singular postura criativa. Podemos mesmo considerar que ele foi um paradoxal compagnon de route dos autores da Nova Vaga francesa, em particular de Alain Resnais, já que algo do seu trabalho implica uma metódica secundarização do clássico efeito de assinatura. Numa recolha de artigos sobre a sua obra, publicada em 2006, Philippe Dubois definia-o através de uma expressão sugestiva: “(...) o mais célebre dos cineastas desconhecidos.”
De onde vem, então, esta espécie de pudor que atravessa a obra de Marker? Sobretudo, como compreender a dinâmica da sua contenção no interior de um trabalho que sempre apostou na acutilância do olhar documental, por vezes com claras e contundentes opções politicas?
Uma resposta possível estará no reconhecimento de que a imagem (cinematográfica ou não, analógica ou digital) nasce sempre de um ambíguo realismo: por um lado, envolve o testemunho directo de uma vivência inevitavelmente material; por outro lado, arrasta qualquer coisa de artificioso, porventura transcendente, que nos leva a questionar as certezas do próprio real que dizemos nela reconhecer.
E não se pense que este é um movimento unívoco, do “naturalismo” para a “fantasia”. Veja-se, a esse propósito, Level 5/Nível 5 (1997) um dos títulos de Marker disponíveis em DVD no mercado português. Aí deparamos com uma trajectória que, num misto de ironia e pedagogia, podemos definir como do “virtual” para o “real”: a protagonista trabalha na concepção de um jogo de vídeo tendo como tema a batalha de Okinawa, acabando por deparar com o labirinto da história e das suas memórias.
Marker utiliza por vezes um dispositivo tradicional de documentário (a deambulação conduzida por uma voz off) para gerar muito mais do que um efeito banalmente “descritivo”. O célebre La Jetée/O Pontão (1962), montado a partir de imagens fotográficas, constitui um exemplo extremo, por assim dizer extremista, de tal sistema de expressão: as memórias de um evento fictício (III Guerra Mundial) vão-se convertendo numa insólita travessia da identidade humana e respectivas formas de comunicação. Por sua vez, Sans Soleil/Sem Sol (1983) viaja por lugares distantes do planeta para, em última instância, convocar o gosto poético que nenhuma objectividade pode rasurar.
No filme de episódios Loin du Vietname (1967), que Marker ajudou a produzir, podemos encontrar a moral deste entendimento do cinema. Encontramos aí vários testemunhos de cineastas (Joris Ivens, Jean-Luc Godard, etc.) que, abordando as convulsões da guerra do Vietname, falam afinal do lugar onde vivem. Para Marker, o longe está sempre perto.
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* ALAIN RESNAIS (n. 1922) – É um dos pilares da renovação histórica do cinema francês, nomeadamente através de títulos como Hiroshima Meu Amor (1959) e O Último Ano em Marienbad (1961). Chris Marker trabalhou com ele, por exemplo, em Les Statues Meurent Aussi (1953).

* JORIS IVENS (1898-1989) – Nascido na Holanda, mas muito ligado à produção francesa, é um dos mestres históricos do género documental. Le Dix-Septième Parallèle (1968) ou Comment Yukong Déplace les Montagnes (1976) são exemplos de um registo da experiência humana nos mais diversos contextos que lhe valeu o cognome de “holandês voador”.

* JEAN-LUC GODARD (n. 1930) – Nome central da dinâmica da Nova Vaga francesa, estreou-se na longa-metragem com O Acossado (1959), é um dos grandes experimentadores das linguagens cinematográficas. Entre os seus trabalhos mais recentes, incluem-se A Nossa Música (2004) e Filme Socialismo (2010).