Nunca entendi bem aquela ideia das coisas “de verão” como sendo sinónimo de algo para exclusivo consumo light... Como se, nos dias de maior calor resolvêssemos mandar também os neurónios de férias... Contudo, é em tempo de férias, se não há viagem pelo caminho, naturalmente, que os dias guardam mais horas para dar outra atenção ao que, num quotidiano com as rotinas do trabalho, nem sempre conhece a mesma disponibilidade... Gosto, por isso, de guardar os livros mais extensos para o verão (e as férias). E, apesar de morar numa das prateleiras há já uns anos, só neste verão li As Benevolentes, de Jonathan Littell. De fio a pavio. E valeu a pena...
Apesar de ter antes escrito um romance em tons cyberpunk (Bad Voltage, publicado em 1989), As Benevolentes assinalou a “estreia” literária do autor num outro patamar, até porque, originalmente redigido em francês (Littell é de origem americana, mas viveu parte da sua educação em França e hoje tem dupla nacionalidade americana e francesa), lhe valeu em 2006 o Goncourt e o Prémio de Romance da Academia Francesa. As perto de 900 páginas mergulham no quotidiano e nas reflexões de um alemão, a narrativa acompanhando-o entre 1941 e maio de 1945, quando a Alemanha nazi aceita a rendição perante os aliados. Como tantos outros seus compatriotas do seu tempo, Maximilian Aue (o protagonista) assistiu à evolução social e política que antecedeu a guerra e escutou a ideologia que levou Hitler ao poder, não deixando de ter uma perspetiva analítica sobre a forma como o mundo entretanto evolui ao seu redor, a progressiva sucessão dos acontecimentos revelando em si momentos de confronto entre aquilo em que acredita, os modelos oficialmente debatidos pelas hierarquias e a sua transformação em prática... Confronto que ganha uma dimensão ainda mais assombrada pelo facto de, sendo um oficial das SS, lhe serem confiadas missões ligadas à chamada “solução final” (ou seja, o holocausto). Acompanhamo-lo assim em primeiros massacres na Ucrânia (acompanhando a missão de um Einsatzkommando) ou mais tarde monitorizando a “qualidade de vida” de prisioneiros em campos de concentração (entre os quais os do complexo de Auschwitz), procurando aí assegurar força de trabalho para as fábricas do reich então envolvidas na produção de elementos para o esforço de guerra (já num tempo de evidente avanço das várias frentes aliadas). Pelo caminho seguimo-lo até a uma frente de combate em Estalinegrado ou de regresso a Berlim, cidade que visitamos em duas etapas, a primeira num tempo de vida “normal” (em tempo de guerra, naturalmente), a segunda já sob os ataques da aviação britânica e, no final, das tropas soviéticas, entre os escombros de um regime a cujo colapso gradual vamos assistindo.
O horror das mortes em massa ou o terror na frente de combate marcam as páginas mais aterradoras do livro, que contudo não secundariza os espaços da vida quotidiana do protagonista e dos que lhe são próximos, entre diálogos e factos o autor dando-nos uma visão de uma realidade onde se colocam dúvidas, debatem ideias, e questionam decisões. O cinema e a literatura do pós-guerra deram sempre mais voz ao ponto de vista dos vencedores que ao dos vencidos. E o que As Benevolentes nos propõe é, precisamente, um outro ponto de vista, Jonathan Littell tendo procurado criar um protagonista através do qual projeta o que crê que teriam sido as suas atitudes e pensamentos caso ali vivesse, naquele lugar e naquele tempo. Ao colocá-lo em cenários reais, entre figuras históricas (como Himmler, Eichmann ou tantos outros rostos célebres da hierarquia nazi) e factos comprovados, o livro encontra uma forma de se relacionar com a realidade, o que faz da narrativa e das reflexões que propõe um espaço que, mais de 70 anos depois, ainda não soa a coisa distante. E por isso incomoda...
Três imagens a propósito de 'As Benevolentes':
1. Ao que parece uma das primeiras fontes de inspiração de Littell surgiu com a contemplação de uma fotografia da execução de Zoya Kosmodemyanskaya, uma resistente soviética capturada e morta pelos alemães em 1941 (quando tinha apenas 18 anos).
2. O documentário de Claude Lanzemann, Shoah, que na sua versão completa soma mais de 600 minutos, terá sido outra das fontes de inspiração para o livro. O filme escuta entrevistados e visita lugares associados à história do holocausto e representou uma das fontes usadas no trabalho de pesquisa que antecedeu a escrita de As Benevolentes.
3. Ao ler algumas das páginas de As Benevolentes, sobretudo aquelas que nos levam a Berlim em 1945, lembrei-me de um outro exemplo notável de representação do que seria um ponto de vista alemão sobre o fim da guerra. A imagem é um frame do belíssimo Alemanha, Ano Zero (1948), de Roberto Rossellini, que nos leva a uma Berlim devastada pelos combates ali travados alguns anos antes.