sábado, julho 28, 2012

Beatles e Stones há 50 anos... (3)


Continuamos a publicação de um artigo originalmente apresentado no suplemento Q., do DN, a 19 de maio de 2012 com o título ‘O ano em que o mundo ouviu os Beatles e viu nascer os Stones’. Em 1962 os Beatles lançavam ‘Love Me Do’, o seu primeiro single. No mesmo ano, depois de um primeiro ensaio, os Rolling Stones estreavam-se num pequeno palco em Londres. 50 anos depois esses dois momentos moram na mitologia da música popular.

Tanto os Beatles como os Rolling Stones celebram em 2012 meio século sob datas marcantes da sua história. Os Stones assinalando os 50 anos sobre a data da sua formação e do seu primeiro concerto. Os Beatles apontando a passagem de cinco décadas sobre a gravação e edição do seu primeiro single, Love Me Do, que saiu para as lojas a 5 de outubro de 1962. Mas o ano um da vida discográfica dos Beatles não começou bem.

Naquele tempo o dia de ano novo não era feriado no Reino Unido. E Brian Epstein, que desde as últimas semanas de 1961 se tornara o manager dos Beatles, conseguira para a banda de Liverpool uma sessão de estúdio para uma das grandes editoras com sede em Londres. “Quase desde o inicio Brian Epstein começou a usar os seus contactos discográficos, exercendo a pressão que podia como dono da loja que se apresentava como a melhor loja de discos do Norte. E logo então a estratégia começou a funcionar. A Decca respondeu que estavam interessados”, conta Hunter Davies naquela que é apresentada como “a única biografia autorizada dos Beatles (26).

A audição estava marcada para 1 de janeiro de 1962. Brian Epstein seguira para Londres de comboio. Os Beatles – eram então John Lennon, George Harrison, Paul McCartney e Pete Best (27) – viajaram de carro com Neil Aspinall (28), que era então o seu road manager e que alugara uma carrinha maior especialmente para esta deslocação. Aspinal “nunca tinha ido a Londres, a paisagem estava coberta de neve e perderam-se pelo caminho” (HD 222) Chegaram pelas dez horas, em noite de fim de ano, e encontraram o hotel, o Royal, perto de Russell Square, relata Aspinall a Hunter Davies. Depois saíram para beber e comer qualquer coisa. Sentaram-se algures em Charing Cross Road, pediram-lhes seis xelins por sopa... “E nós respondemos que deviam estar a brincar. O empregado disse que tínhamos de sair. E saímos”, acrescenta. (29)

Brian Espstein foi o primeiro a chegar ao estúdio na manhã de dia 1. Hunter Davies juntou no seu livro um retrato do momento: “Brian aconselhou-os a tocar apenas standards, pelo que não apresentaram canções suas. (…) Estavam assustados. O Paul não conseguiu cantar uma das canções. Estava muito nervoso e a sua voz não aguentou. Estavam meio assustados com a luz vermelha” (30)

Entraram, ligaram eles mesmos os seus amplificadores e começaram a tocar, descreve George Harrsison em Anthology. “Naquele tempo muitas das canções de rock'n'roll eram temas antigos dos anos 40 e 50, ou lá o que fosse, que tinham sido arrocalhados. Era o que se fazia se não se tinha temas próprios: arrocalhar um tema antigo. Joe Brown tinha gravado uma versão rock'n'roll de The Sheik Of Araby (31) (…) Eu cantei o Sheik Of Araby. O Paul cantou September in The Rain (32). Cada um escolheu o tema que queria fazer. Era invulgar, nessa altura, haver uma banda onde todos cantassem. Nesses dias era mais o modelo Cliff e os Shadows (33), um protagonista à frente, toda a banda vestida de fato, gravatas a condizer e lanços, todos com movimentos certos e um tipo lá à frente a cantar. A audição durou umas duas horas e foi isso. Saímos e regressámos ao hotel”. (34) Estavam confiantes, acreditando que tinham gostado deles. Mas receberam um não que levou, contudo, algum tempo a chegar.

John Lennon explicou que não ouviram ecos dessa sessão “durante um tempão”. Brian Epstein tentava obter respostas mais claras da Decca. “O engraçado é que fomos recusados por alguém daquelas bandas dum de dum... Tony Meehan, um baterista que se tinha transformado em A&R da Decca. Há uma história famosa sobre como o Brian tentava saber, junto dele, se tinham ou não gostado de nós. Ao que respondeu “Sou um homem ocupado, Mr Epstein”. E era apenas um miúdo” (35)

Nos anos 90, ao trabalhar o projeto Anthology (36), Paul McCartney reconhece que, “ao ouvir as fitas” consegue compreender porque fracassaram na audição de 1 de janeiro para a Decca. Diz mesmo que acha, que os Beatles não eram então “assim tão bons, apesar de haver ali algumas coisas interessantes e originais” (37) Numa outra entrevista que o mesmo livro cita, John Lennon explicara que não teria recusado os Beatles com base naquela audição. “Soava bem. Especialmente a segunda metade (…) Não havia muita gente a tocar música daquela maneira, então. Acho que a Decca esperava que fossemos mais polidos, mas estávamos apenas a gravar uma maquete! Deviam ter visto o nosso potencial” (38)

Sem editora, por enquanto, mas com um estatuto em franca afirmação (sobretudo em, Liverpool), voltaram aos palcos, tendo ocupado por várias vezes o cartaz do Cavern nas semanas seguintes. Ao mesmo tempo, em Londres, os Rolling Stones viviam o último episódio da sua pré-história...

26 - The Beatles – 40th anniversary Edition, de Hunter Davies, pág 221
27 – Pete Best (n. 1941) Baterista dos Beatles entre 1960 e 1962. Tem carreira a solo desde 1964.
28 – Neil Aspinall (1941-2008) Originalmente o road manager dos Beatles, foi mais tarde o homem do leme da Apple Corps, a empresa criada em 1968 para gerir a música e imagem dos Beatles.
29 - The Beatles – 40th anniversary Edition, de Hunter Davies, pág 222
30 – ibidem
31 – The Sheik Of Araby é uma canção dos anos 20. Foi escrita em 1921 por Harry B Smith e Francis Wheeler, com música de Ted Snyder. Uma versão pelos Beatles pode ouvir-se no volume 1 de Anthology
32 – September in The Rain é uma canção de 1937 de Harry Warren e Al Dubin. Há versões gravadas por nomes como os de Bing Crosby, Doris Day ou Frank Sinatra.
33 – Cliff Richard e os Shadows – Cliff Richard (n. 1940) e os Shadows são dois casos de sucesso maior da primeira geração pop/rock britânica, surgida em finais dos anos 50.
34 - in Anthology, pág 67
35 – in Anthology, pág 67
36 – Além de um livro autobiográfico dos Beatles, o projeto incluiu três antologias em CD duplo e ainda um documentário em vários episódios.
37 - in Anthology, pág 67
38 – ibidem