quarta-feira, junho 20, 2012

Mais que apenas um retrato...

É um dos mais aterradores relatos de sobreviventes ao holocausto. Um entre os muitos milhares de judeus húngaros que em meados de 1944 foram deportados para Auschwitz, Eli Wiesel registou em A Noite o retrato de uma verdadeira descida ao inferno que só a companhia do seu pai (que todavia acabaria por morrer a dias da libertação) fez minimamente coisa humana. A descrição do transporte, a chegada ao campo e a primeira seleção (os que ficavam na fila da esquerda seguiam diretamente para as câmaras de gás), a visão aterradora das chaminés dos crematórios, as valas a céu aberto onde havia corpos... A mudança para um dos campos de trabalho nas imediações e o dia a dia de labor e quase nada mais, a progressiva perda de ânimo e interesse em tudo, os castigos, as segundas e terceiras seleções (das quais apenas os mais fisicamente aptos se salvavam, os restantes seguindo para a morte)... E já em 1945, perante o avanço da frente russa, as caminhadas de quilómetros na paisagem gelada, a chegada a Buchenwald... E só aí, no dia da libertação, o principio do fim de um pesadelo que, na verdade, nunca o abandonou. Originalmente publicado em 1958, A Noite gerou desde sempre um debate sobre se é uma memória autobiográfica, se um testemunho, se uma ficção baseada no real. Há defensores para cada uma das teses. Verdade sendo que, pela precisão das palavras e pelo focos narrativos, o livro não é um mero relato de vida (e de morte). É também um confronto entre alguém que a dada altura questiona o papel de Deus, porque permite que certas coisas aconteçam, e se ainda existe... E é no âmago desse conflito que mora a alma que faz de A Noite, mais que um retrato, a expressão mais profunda de uma experiência, no que ela teve de factual e de como motivou reflexões, ideias, lançou questões...