sábado, junho 02, 2012

CANNES 2012: cinema & televisão

O Festival de Cannes reflectiu diversas formas de cruzamento cinema/televisão. Desde o universo temático até às memórias cinéfilas, passando pelas estratégias de produção — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 Junho), com o título 'Três memórias de Cannes'.

1. A proliferação do Big Brother e dos formatos da “reality TV” tem sido acompanhada de um discurso chantagista que importa enfrentar. Assim, circula a sugestão de que a reflexão sobre os padrões humanos do Big Brother (e, sobretudo, a sua desumanidade) seria uma preocupação irrelevante, enraizada num círculo ultra-minoritário de intelectuais. Mesmo sem discutir a descrição dos intelectuais como um “rebanho”, vale a pena relembrar que tal reflexão atravessa muitas zonas criativas das sociedades contemporâneas, nomeadamente o cinema. O Festival de Cannes apresentou um belo exemplo de tal atitude, aliás proveniente de Itália, um dos países mais afectados pela degradação populista do espaço televisivo: chama-se Reality, tem assinatura de Matteo Garrone (o cineasta de Gomorra), e segue as atribulações do dono de uma peixaria de Nápoles, cuja existência é drasticamente abalada a partir do momento em que participa num casting para o Big Brother. Distinguido com o Grande Prémio do festival (o segundo na hierarquia do certame), Reality é um objecto tanto mais estimulante quanto reinventa a grande tradição da comédia italiana, ligada à herança de actores como Totó e Vittorio Gassman ou cineastas como Mario Monicelli e Dino Risi.

2. Cannes deu a ver o mais recente trabalho de Philip Kaufman (autor de filmes como Os Eleitos e A Insustentável Leveza do Ser), produzido para televisão, pela HBO, mas recuperando um modelo cinematográfico de épico romântico. Chama-se Hemingway & Gellhorn, tem Clive Owen e Nicole Kidman como intérpretes principais e recorda os tempos atribulados do casamento de Ernest Hemingway e Martha Gellhorn. Esperemos que os canais portugueses estejam atentos...

3. Poucos dias depois da sua passagem em Cannes, o canal Arte exibiu Une Journée Particulière, documentário do presidente do festival, Gilles Jacob, evocando a convivência com os 35 cineastas que assinaram os episódios de Cada um o seu Cinema (2007), com que o certame assinalou o seu 60º aniversário. Cinema e televisão vivem também desta constante partilha de memórias.