sábado, maio 19, 2012

"Procurem Abrigo" ou o impossível

Onde acaba o real (vivido) e começa o irreal (de um filme, por exemplo)? Pois bem: não sabemos... Assim acontece, pelo menos, no admirável Take Shelter/Procurem Abrigo, de Jeff Nichols — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Maio), com o título 'O cinema, o real e o impossível'.

Não há muitos filmes como Procurem Abrigo, de Jeff Nichols. Desde logo porque nele se expõe a vertigem de uma personagem invulgar: um pai de família, numa pequena cidade do Ohio, ameaçado pelos fantasmas da doença (uma esquizofrenia hereditária?), até certo ponto consciente da sua perda de coordenadas. Depois porque tal drama interior arrasta um pressentimento de apocalipse que afecta não apenas os mais próximos (a mulher e a filha), mas o corpo vivo do próprio filme. Se o protagonista é alguém que vacila na identificação das fronteiras do real, Procurem Abrigo é um filme em que o cinema se reafirma como a arte suprema de discutir a própria possibilidade de conhecermos o real. Ou como dizia o pai Lacan: “O real é o impossível”.
A questão não é banal. E não receemos conduzi-la ao extremo desafio, cultural e simbólico, que o seu desenvolvimento implica. Trata-se, afinal, de reagir ao poder de uma cultura televisiva de quotidiana infantilização, alicerçada no trabalho das suas câmaras ilusoriamente neutras: “O real está aqui, nestas imagens.” Ora, cinematograficamente, o real é esse magma que se desloca cada vez que nele emerge um olhar, redesenhando as suas fronteiras: “O real resiste através das suas imagens.”
De Alfred Hitchcock a Roman Polanski, grandes cineastas fizeram dessa aventura um jogo metódico, por vezes cruel, com o prazer do espectador. Dizer se Jeff Nichols possui ou não a dimensão desses mestres, eis uma questão profética que, em boa verdade, não pertence à critica de cinema. Acontece que, com o fulgurante Procurem Abrigo, Nichols consegue a proeza de relançar tudo isso com uma inteligência tocante, expondo a dor imensa de todas as utopias familiares. Esta família não vai aparecer nos telejornais.