Esta é uma versão editada de um texto originalmente publicado na edição de 23 de abril com o título ‘Retrato de um colecionador nos dias da cortina de ferro’.
Tinha uma multidão de peças de porcelana de Meissen no seu pequeno apartamento em Praga. E outras mais, algumas compradas a preços de fazer corar uma carteira, num cofre num banco suíço. Era descendente de uma família alemã com dinheiro e tradição, mas a história de vida levou-o das memórias do palacete em Dresden e do castelo neomedieval da avó em Ceske Krizove para um pequeno apartamento de duas assoalhada em Praga, a um ano da Primavera em que blindados soviéticos abafaram o desejo checo de liberdade. Figura discreta, Kaspar Joachim Utz trabalhava numa biblioteca. E quando o seu maior amigo lhe propõe uma fuga para o ocidente, olha para as suas porcelanas e responde sem hesitações: “Não posso abandoná-las...”
Assim se pode descrever o protagonista de Utz, o penúltimo romance que o escritor britânico Bruce Chatwin (na foto, 1940-1989) publicou em vida. Originalmente lançado em 1988, Utz toma a história deste colecionador de porcelanas, que uma vez por ano tinha autorização para passar uns dias em Vichy (aproveitando, de passagem pela Suíça, onde guardava dinheiros de outros tempos, para comprar mais uma peça rara), para fazer não só o retrato da vida numa grande cidade do lado de lá da cortina de ferro – Praga, neste caso –, dar-nos um á-bê-cê das porcelanas de Meissen e explorar a psicologia de dedicação exacerbada de um colecionador. A reconhecida arte do viajante que conta histórias que conhecemos dos volumes que Chatwin dedicou à Patagónia reconhece-se em Utz, porém sob uma rara capacidade em com pouco dizer muito. Chatwin usa personagens e situações para nos descrever a vivência de um povo sob um regime repressivo (o retrato do funeral de Utz, que abre o livro, é desde logo bem claro na forma crítica como descreve aquela realidade). E junta ainda, como tempero politicamente incorreto (porque afinal aqui não há heróis), alguns episódios menos éticos no passado de Kaspar Utz, como os dias em que, na sequência do colapso da bolsa de Nova Iorque (1929) ou da Noite de Cristal (1938) aproveitou os desaires dos desafortunados para, a troco de dólares, comprar louça de porcelana a quem precisava de fugir.
A coleção que o protagonista de Utz guarda entre a sua casa em Praga e o cofre na Suíça é feita de peças de porcelana de Meissen. A técnica surgiu em 1708, criada por Ehrenfried Walther von Tschirnhaus (1651-1708)em Meissen (perto de Dresden, na Alemanha). A procura aumentou logo que ganhou fama internacional. De resto, até meados do século XVIII, os artesãos de Meissen dominaram a produção europeia.
Utz, que a Quetzal volta a colocar no mercado português (em tradução de José Luis Luna) foi finalista do Prémio Booker e, juntamente com a coleção de ensaios O Que Faço eu Aqui?, surgiu nos escaparates das livrarias no ano anterior à morte do escritor.