segunda-feira, maio 07, 2012

Novas edições:
Damon Albarn, Dr. Dee


Damon Albarn
“Dr. Dee”
Parlophone / EMI Music
5 / 5

Não são frequentes, mas as ocasionais visitas de nomes com carreira nascida em terreno pop aos espaços da ópera (e arredores) geram obras que acabam inevitavelmente por enfrentar os preconceitos de ambos os lados (a ideia de que existe uma barreira é por vezes mais firme junto de quem fala sobre música do que quem a faz, mas enfim...). É certo que não podemos comparar a visão pop de um Malcolm McClaren quando aborda Madama Butterfly de Puccini ou a Carmen de Bizet no álbum Fans (1985) aos diálogos entre um Elvis Costello e Anne Sofie Von Otter em For The Stars (2000). E foi curioso verificar que, quando Rufus Wainwright estreou Prima Donna, os raros elogios que colheu chegaram da imprensa mais próxima da pop. Mas quando Renee Flemming canta os Muse ou Peter Gabriel em Dark Hope (as versões são fraquitas, é verdade), quase nem surgem referências ao disco na imprensa menos atenta ao que acontece nos espaços da música clássica. Damon Albarn não é propriamente um estreante nestes territórios e, como extensão natural da aventura Gorillaz, criou com Jamie Hewlett a ópera Monkey: Journey To The West, baseada em poemas chineses do século XVI. Ao mesmo tempo regressa agora em Dr. Dee, nova ópera (onde Hewlett volta a ser importante colaborador) que toma a figura de John Dee (homem de ciência igualmente encantado pelos mistérios do mundo da magia, que viveu na Inglaterra dos tempos de Isabel I) como protagonista. A ópera, estreada em 2011 em Manchester (tal como o fora Monkey Journey To The West), terá nova vida este ano no festival cultural que acompanhará as olimpíadas de Londres. E tem agora versão em disco. Se para quem acompanhou os Blur (a banda que revelou Albarn) esta possa ser uma aventura fora de eventuais fronteiras (que, reforço, são coisa mais virtual que real), na verdade, e se tivermos em conta o percurso do músico, Dr Dee não é senão a projeção natural de muitos dos seus interesses e expressão de uma alma de horizontes largos. O disco começa com sons ambientais e um órgão, que definem um cenário. Porém, em vez de tentar criar uma ilusão de época pelo recurso a ideias musicais contemporâneas do protagonista, a música de Dr. Dee opta antes por juntar elementos folk, a voz do próprio Albarn (em algumas das mais belas baladas pastorais que alguma vez criou), canto lírico, citações de formas da música antiga (de trovas festivas a música coral religiosa), guitarras acústicas e o som de uma orquestra, ocasional (mas discreta) eletricidade e até mesmo pontuais ritmos africanos. A história da música acolheu já inúmeros momentos de contacto entre fontes e referências. Os nacionalistas do século XIX descobriram ecos de personalidade em tradições locais. Nos anos 20 do século XX, Gershwin levou o jazz às salas de concerto de música clássica. Nos anos 30 e 40 Carl Orff cruzou uma linguagem assente na percussão com ecos de cantos medievais. Mais adiante, Bernstein juntou elementos de gospel e mesmo da cultura pop/rock ao criar a Missa, uma das suas mais importantes obras. John Adams integra elementos pop em I Was Looking at the Ceiling and Then I Saw the Sky. E em Songs From Liquid Days Philip Glass acolheu colaborações de nomes como Paul Simon, David Byrne ou Laurie Anderson. Não devermos ser capazes de encontrar hoje um compositor dos nossos dias que não tenha escutado canções pop/rock, as novas electrónicas ou outros universos e que, de alguma forma, reflita essas experiências na sua música, por muito afastada dos cânones da música popular que se possa depois manifestar. Na verdade, entre as novas gerações de músicos, há mais desconhecimento e preconceitos junto dos que circulam em terreno pop. Que o trabalho de um Damon Albarn (hoje a milhas das “quezílias” inconsequentes Blur/Oasis) seja exemplo de como a música do século XXI é um espaço que, em tempo de comunicação global, traduz sobretudo uma ideia de música como experiência também ela informada (e global).