segunda-feira, maio 28, 2012

Cinema português: os números e o resto

Como é óbvio, a compreensão do estado de coisas de uma cinematografia não se pode reduzir ao inventário dos respectivos números. Em Portugal, em todo o caso, propagam-se delírios e demagogias sem sequer existir o hábito de, ao menos, dar alguma atenção a esses números — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Maio), com o título 'Que espectadores para os filmes portugueses?.

Nas últimas semanas, chegaram às salas dois filmes portugueses aos quais se colaram, automaticamente, os rótulos de “acessíveis” e “comerciais”: Assim Assim, de Sérgio Graciano, e A Teia de Gelo, de Nicolau Breyner. O primeiro seria um retrato “despretensioso” de personagens “como nós”; o segundo recuperaria referências “tradicionais” dos géneros policial e de terror.
Não vou esconder que, em ambos os casos, os resultados me parecem profundamente desinteressantes, marcados que estão pela formatação (psicológica ou anedótica) imposta pelas telenovelas. Em todo o caso, mesmo que estivéssemos perante radiosas obras-primas, a impostura mantinha-se. Impostura dos cineastas? Não, impostura desse discurso que “ninguém” diz, mas que, nem que seja por demissão jornalística, tantas vezes aceitamos como um retrato adequado do cinema português: de um lado estariam os filmes “difíceis” que ninguém vai ver; do outro os produtos “populares” que mobilizam delirantes multidões de espectadores...
Qual é, então, a estatística do fenómeno? De acordo com os números oficiais (até 16 de Maio) do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA), a performance comercial dos filmes em causa é liminarmente desastrosa: Assim Assim foi visto por 11.646 espectadores em 1.334 sessões (8,7 espectadores/sessão) e A Teia de Gelo por 4.805 em 721 sessões (6,6 espectadores/sessão). Vale a pena lembrar que, em 2012, os filmes portugueses até agora mais vistos são Florbela, de Vicente Alves do Ó, e Tabu, de Miguel Gomes, respectivamente com 37.369 e 18.335 espectadores (com taxas de ocupação que quase triplicam as dos exemplos anteriores).
Escusado será dizer que importa não combater uma estupidez com outra: deduzir as “qualidades” dos filmes (ou a falta delas) a partir de números das bilheteiras é uma chantagem que pertence ao espaço maniqueísta de debates televisivos mais ou menos gritados. Reconheça-se, aliás, que os próprios criadores demonstram o rudimentar bom senso de se demarcarem da demagogia que boicota qualquer discussão séria sobre a existência do cinema em Portugal. Nicolau Breyner, por exemplo, também no DN (3 de Maio): “(...) terá de acabar esta estúpida polémica entre o cinema de autor e o cinema comercial. Cinema é cinema. Quem me dera a mim que todos os filmes portugueses tenham um milhão de espectadores.”
Em boa verdade, importa também dizer que nenhum dos números citados justifica grandes euforias: em termos gerais, os espectadores portugueses mantêm uma relação frágil com o cinema do seu próprio país. O que se joga é de outra natureza, já que se liga com os poderes mais fortes da nossa vida cultural. A pergunta (descartada pela maioria da classe política) é esta: será possível que um público formatado, há mais de três décadas, pela mediocridade das telenovelas se interesse pelos filmes portugueses? A resposta tem tanto de cruel como de transparente: não é possível.