O caso do lançamento de Titanic em versão a três dimensões envolve um inevitável efeito sintomático: afinal, o 3D é um espaço criativo ou um "truque" promocional? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Abril), com o título 'O mercado contra os actores'.
Hoje em dia, que é feito dos actores de cinema? Ou melhor: que está a acontecer com os actores no cinema? A pergunta justifica-se, quanto mais não seja porque o mercado os vai apagando de forma mais ou menos metódica da promoção dos próprios filmes. Não que o mercado (distribuição/exibição) seja, por si só, um gerador de padrões culturais e tendências de consumo. Mas é um facto que muitas das suas opções são um espelho revelador das tendências mais gerais do universo cinematográfico.
O incremento industrial e comercial do digital deu origem a uma blague sintomática: graças aos novos recursos técnicos, tornou-se possível dispensar os actores, colocando no seu lugar... corpos digitais. Em todo o caso, o que está a acontecer vai mais fundo. Observe-se à nossa volta: The Hunger Games/Os Jogos da Fome é encarado como uma hipótese de lançamento de uma nova “franchise” (não como uma eventual confirmação do talento de Jannifer Lawrence); Fúria de Titãs apresenta-se como uma avalancha de gritos, ruídos e explosões (sendo indiferente a presença no elenco de nomes como Liam Neeson ou Ralph Fiennes); Espelho Meu, Espelho Meu... comete mesmo a proeza de banalizar a presença de Julia Roberts (o que expõe também a crescente fragilidade do próprio estatuto de estrela).
Ainda assim, o caso mais insólito será o da reposição de Titanic, de James Cameron. Não quero esconder que, para além da sua importância sociológica, este sempre me pareceu um objecto sobrevalorizado, enraizado num entendimento “decorativista” do melodrama clássico. Seja como for, o que aqui se refere decorre menos dos valores específicos do filme e mais, precisamente, da sua percepção social. Assim, o relançamento de Titanic (associado à passagem do centenário do afundamento do lendário paquete) não teve os nomes de Leonardo DiCaprio e Kate Winslet como trunfos fundamentais, já que a sua reposição em três dimensões constituiu o elemento nuclear das promoções.
Reflecte-se, aqui, a pressão do mercado para tentar consolidar um formato (3D) que, salvo honrosas excepções (Spielberg, Scorsese, Wenders), continua a existir como uma “fórmula” para vender mais bilhetes e, sobretudo, bilhetes mais caros. Mais do que isso: a “reinvenção” comercial de Titanic em 3D surge como um elemento suplementar no perverso processo de apagamento da memória cinematográfica ou, talvez, do cinema como matéria de memória. De facto, tudo se passa como se o Titanic original (lançado em 1997) fosse, para a indústria, um objecto descartável, disponível para qualquer transfiguração que a conjuntura tecnológica, ou comercial, possa impor.
A tão propalada crise de espectadores nas salas passa também por essa cruel ambivalência: o mercado está dominado por conceitos que, quase sempre, consideram os filmes como “produtos”. E as palavras são sempre reveladoras da relação que estabelecemos com os objectos que nomeamos.