domingo, abril 22, 2012

Tele-futebol: ideologia & miséria

KASIMIR MALEVICH
Pressentimento Complexo (1928-32)
O futebol é uma das matrizes essenciais (porventura, a matriz essencial) para compreendermos os valores dominantes da ideologia televisiva — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Abril), com o título 'Miséria futebolística'.

1. Por norma, as televisões contornam a simples possibilidade de questionar os seus valores informativos. Empobrecem-se com isso e por isso. Recorde-se o aparato montado em torno do facto de o Benfica ter poucas possibilidades de ganhar o título de campeão (escusado será dizer que o factor “Benfica” é irrelevante: a situação já se verificou noutras épocas, com outros clubes). Tudo decorre do recalcamento de um dado objectivo: há 16 equipas a disputar a Liga, quer dizer, 15 vão necessariamente perder o campeonato... Em todo o caso, as televisões não estão a falar de futebol: assumem-se como canais de transmissão dos desígnios do destino. Daí que tenham lançado para o terreno repórteres que, antes mesmo da final da Taça da Liga, perguntavam aos adeptos anónimos: “Acha que uma vitória pode salvar a época do Benfica?” Um dia, um entrevistado com mais presença de espírito dirá: “A sua pergunta significa que os outros 15 clubes jogam todos para perder ou que não têm legitimidade para ganhar?”

2. Miséria cultural. Quero eu dizer: miséria de valores de vida. Mais do que isso: miséria da (des)valorização com que tratamos as convulsões do nosso quotidiano. Exemplo? Vivemos num país em que muita gente aprendeu a proclamar que os números de frequência do cinema português são um “desastre”, daí deduzindo a necessidade de medidas mais ou menos apocalípticas que façam tábua rasa de tudo e de todos... Assim, se um filme faz, por exemplo, quatro ou cinco mil espectadores nas salas, não faltam os demagogos de serviço, apelando a que se ponha ordem nesta desgraça. E, no entanto, 30 pessoas insultam os passageiros do autocarro do Benfica (ao chegar a Lisboa, depois da final da Taça da Liga) e as televisões acham que faz sentido transformar isso numa notícia que se repete e repete e repete... Especificando, aliás, com a inocência da objectividade: “30 pessoas”. A mensagem é muito simples: três dezenas de cidadãos a gritarem insultos por causa do futebol é um acontecimento nacional; alguns milhares a verem cinema português é um crime. Ficamos a saber.