quarta-feira, abril 25, 2012

Salvio e D. Sebastião

Um dos efeitos mais curiosos, e também mais perversos, da mitologia futebolística é o seu continuado esvaziamento de outras mitologias. Observe-se, por exemplo, a capa de A Bola, do dia 24 de Abril de 2012. Será preciso uma enorme boa vontade para supor que Salvio virá a obter um lugar heróico
na história do nosso abençoado país — em todo o caso, isso não surge como impedimento para o envolver nas boas graças de um sebastianismo revisionista (ou revivalista, se preferirem) que se exprime com uma candura, no mínimo, desconcertante. Candura, de facto: não há aqui a intenção maligna de desagregar a história, reduzindo-a a uma colecção de referências irrisórias (mesmo se é esse o efeito prático mais comum destas "ironias" jornalísticas); há, isso sim, uma apoteótica indiferença por tudo o que possa ter a ver com a nossa identidade colectiva e respectivas relações com o património de séculos e séculos. Na sua Mensagem (1934), Fernando Pessoa vislumbrou no jovem monarca, desejado, o símbolo magoado de uma ânsia de reconquista de uma errática identidade colectiva — salvo o devido respeito pelos talentos do jogador, não parece legítimo supor que o poeta encarasse o nome "Salvio" como um possível heterónimo de D. Sebastião.

P.S. - Obrigado aos leitores que chamaram a atenção para o erro: "Salvio" e não "Saviola". Também eu fui contaminado pela instrumentalização dos nomes. Billy Wilder avisa: Nobody's perfect.