É, por certo, um dos momentos altos deste ano cinematográfico: Milestones (1975), de Robert Kramer, obra-prima do cinema independente americano, passa hoje, dia 25 de Abril, na RTP2 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Abril), com o título 'Para redescobrir um clássico americano'.
Não será arriscado prever que, ao longo da próxima semana, o lançamento do filme Os Vingadores (primeiro blockbuster da temporada de Verão) terá honras de destaque em vários serviços informativos da televisão. Surpresa? Nenhuma. Os modelos dominantes da informação televisiva alheiam-se sistematicamente da mais inteligente produção americana, incluindo a que sai dos grandes estúdios, preferindo destacar produtos como Os Vingadores cuja avassaladora mediocridade apenas envergonha as mais nobres tradições de Hollywood.
Desta vez, nos bastidores desta rotina preguiçosa, deparamos com uma ironia complementar: o grande filme da semana tem chancela de distribuição de uma pequena empresa (Periferia Filmes) e estará, não nas salas de cinema, mas... na televisão (RTP2, dia 25, 23h30). É também americano, surgiu no ano de 1975 e provém do período mais radical e mais heróico do cinema independente dos EUA: chama-se Milestones e ilustra o génio criativo de Robert Kramer (1939-1999), autor incontornável desse cinema, aliás com uma forte relação afectiva e profissional com o nosso país, onde realizou Scenes from the Class Struggle in Portugal (1977).
Em termos simples, podemos resumir Milestones como uma consequência directa, ao mesmo tempo política e existencial, dos títulos anteriores de Kramer, em particular Ice (1970), e da sua colaboração com John Douglas (que co-assina a realização de Milestones). Na sua origem temática estão os movimentos sociais e culturais da década de 60, com raízes na esquerda mais radical e tendo como pólo fundamental a contestação da guerra do Vietname. Em todo o caso, o filme, uma colagem poética de muitas histórias de personagens à deriva, há muito transcendeu qualquer discurso ou apropriação de carácter panfletário, impondo-se pela sua dimensão genuinamente épica. O que, entenda-se, não exclui um angustiado intimismo apostado em questionar as certezas mais tradicionais das relações familiares e sociais.
Premiado no Festival da Figueira da Foz de 1975, Milestones transformou-se num “ovni” lendário que, para duas ou três gerações de espectadores, permaneceu como um clássico praticamente invisível (em finais de 2010, surgiu numa edição francesa em DVD, juntamente com Ice). Além do mais, desde a interrogação das raízes da nossa identidade social até às contaminações entre documentário e ficção, há nele uma actualidade que tem tanto de metódico quanto perturbante. A herança de Kramer constitui mesmo um dos tesouros esquecidos do cinema made in USA da segunda metade do século XX, sendo também dele o admirável Route One USA (1989), uma outra viagem sobre um país à procura do seu centro geográfico e simbólico. Sejamos, por isso, rigorosos: a passagem de Milestones na RTP2 constitui, desde já, um dos acontecimentos centrais de todo o ano cinematográfico de 2012.
>>> Sobre Milestones + Ice em DVD (Los Angeles Times).
>>> Entrevista com Robert Kramer e John Douglas (Jump Cut).
>>> Contra-cultura dos anos 60 (Wikipedia).