quarta-feira, abril 11, 2012

Fumar nos carros com crianças???...

MARLENE DIETRICH
Shangai Express (1932), de Josef von Sternberg
* Qual a situação cultural do nosso país?

* Eis uma pergunta que as almas caridosas (e algumas outras, mais dadas ao cinismo) consideram que encontra respostas comoventes e radiosas sempre que algum canal de televisão passa uma ópera, um bailado... ou qualquer outra coisa que a hipocrisia reinante possa tratar em nome de uma "seriedade" que ninguém se lembra de exigir aos horrores que são emitidos em nome da "alegria" e do "entretenimento".

* É também uma pergunta que, por mais estranho que isso possa parecer, encontra uma resposta adequada nesta notícia: 'Governo vai proibir fumar nos carros com crianças'.

* Como chegámos aqui? Como chegámos a este esvaziamento cultural?

* Não se trata de discutir nenhuma das questões que a preguiça demagógica logo convoca para "enquadrar" a questão. A saber: que o fumo é pernicioso à saúde, que importa não castigar as crianças por causa de certas escolhas dos adultos, etc., etc.

* Nem se trata, entenda-se, de forçar a estupidez caricatural, proclamando que importaria... "incentivar" o fumo junto das crianças.

* O que está em jogo não tem nada a ver com visões voluntaristas da vida social e das relações humanas (nem com os infinitos debates alarmistas que, para nossa maior desgraça, as televisões continuam a favorecer). O que está em jogo decorre do entendimento, político e filosófico, do nosso viver colectivo.

* Vivemos, afinal, numa sociedade em que há muito triunfou uma ideologia brutal: a do proteccionismo compulsivo do cidadão.

* Na praça pública, a classe política (e muitos sectores da classe jornalística) desistiu de trabalhar para a responsabilização, individual e colectiva, dos cidadãos. Nada disso: o cidadão é tratado como uma entidade sem vontade, ideias ou pensamento. E como "obrigação" de tal tratamento nasce a necessidade de o... proteger — somos impelidos a assumirmo-nos como vítimas potenciais, logo só podemos esperar que nos protejam.

* Os exemplos são intermináveis e laboram, todos os dias, para nos fazerem funcionar como uma comunidade de seres amorfos e... sempre ameaçados. Assim, se um filme visceralmente adulto — O Último Tango em Paris, A Última Tentação de Cristo, Seven, etc., etc. — passa numa televisão, nem que seja às 2 da madrugada (e, como é sabido, este horário não tem nada de caricatural), é imperioso (legalmente obrigatório, recorde-se) colocar uma bolinha vermelha no canto superior direito do ecrã... Ao mesmo tempo, vivemos com a nossa ficção audiovisual ocupada, há mais de 30 anos, pela miséria telenovelesca; assistimos há pelo menos duas décadas à proliferação, muitas vezes em horário nobre, de programas que reduzem o factor humano a coisa anedótica ou mesmo desprezível... E não há um elemento da nossa douta classe política que se atreva a questionar o desgaste cultural, moral e simbólico (entenda-se: do simbólico) que o pior da televisão injecta, todos os dias, na dinâmica social.

* Num tempo assim vivido, há quem se preocupe em legislar para impedir que se fume em carros com crianças...

* Poderíamos lançar uma discussão logística sobre o assunto, perguntando, por exemplo, como é que a lei vai ser posta em prática? Como será aplicada? Quem fiscaliza o quê?

* Mais uma vez, a questão não é essa. A questão é a do metódico e implacável apagamento da esfera privada, sinalizado pelo triunfo televisivo da matriz Big Brother — e quando os promotores desse formato televisivo proclamam que "não há limites para o fenómeno Big Brother", honra lhes seja feita, estão apenas a ser objectivos.

* De acordo com a ideologia da continuada exposição pública, o que define a identidade de um cidadão é, apenas e só, a sua redução a um índice normativo observado por todos os outros.

* Proibir o acto de fumar nos carros com crianças decorre da mesmíssima ideologia. Com três valores articulados:
1 - o cidadão encontra-se desprovido de qualquer sentido de responsabilidade;
2 - o cidadão vive o social, não como uma relação, mas como uma exposição compulsiva;
3 - irresponsável e violentamente exposto, o cidadão precisa de ser... ajudado através de normas de limpeza, também elas "naturalmente" compulsivas.

* E não deixa de ser sintomático que tudo isto aconteça numa mesma sociedade em que televisões, classe política e imprensa cor-de-rosa nos massacram todos os dias com delirantes exaltações do valor matricial da família, da vocação formadora da família, do carácter intocável e indestrutível da família... Em boa verdade, para tais legisladores (do comportamento dos outros), a família não passa disto mesmo: um território apropriado por um discurso obscenamente normativo onde, de acordo com a sua lógica purificadora, é preciso... intervir.

* No smoking.