Sem ofensa para Josef Haydn... A sua Sinfonia nº 103 (Rufo de timbales) fechou a primeira parte do concerto de Gustavo Dudamel no Grande Auditório da Fundação Gulbenkian (27 Março, 21h00), mas a noite foi, toda ela, dominada pelas sonoridades, angústias e êxtases de Richard Strauss.
Dois poemas sinfónicos — Don Juan e Assim Falou Zaratustra —, a abrir a primeira parte e a preencher a segunda, dominaram o alinhamento, numa viagem de reencontro e redescoberta de um tempo remoto ma non troppo, e também do seu novelo de linguagens, tempo em que pressentimos a decomposição de um mundo ainda crente nas suas mitologias ("românticas"), dando lugar a uma época de progressivo desencanto moral e fragilização do factor humano. A esse propósito, vale a pena lembrar que as duas obras foram compostas, respectivamente, em 1889 e 1896.
Dudamel veio, desta vez, com a admirável Orquestra Sinfónica de Gotemburgo, de que é director musical desde 2007 (a corrente temporada será a derradeira, assumindo então a condição de director honorífico). E, mais do que nunca, vale a pena referir a inadequação de alguns epítetos que se colaram à sua imagem de marca. Porventura faz sentido descrevê-lo como "fogoso", "exuberante" e "teatral"... Mas quantas dezenas de maestros não encaixam em tais adjectivos? Um pouco ao contrário, importa reter o que nele é, não apenas esplendorosa contenção, mas sobretudo metódica atenção às mais discretas nuances das obras interpretadas. Apetece mesmo dizer que há nele uma paixão pelo lirismo mais secreto das peças que dirige (mas é um facto que tal designação, ainda que sugestiva, corre o risco de atrair referências ou conotações em todo estranhas ao seu labor).
Ao lidar com Strauss, justamente, Dudamel expõe o que nele é, de uma só vez, assunção da herança romântica e angustiada decomposição das suas ilusões redentoras. Daí a abordagem, quer de Don Juan, quer de Assim Falou Zaratustra, na sua plenitude mais primordial. A saber: já não obras organizadas em partes, satisfazendo estruturas mais ou menos codificadas, antes deambulações arfantes e poéticas, estranhamente racionais, cujo desafio existencial se confunde com as singularidades da sua própria duração.
Qual a "mensagem", então? Como recebemos as contradições do "donjuanismo" e a violência metafórica de Nietzsche para um mundo agora (des)assombrado com a morte de Deus? Pois bem, como uma escrita não de "ilustração" temática, mas de incessante procura de cristalização de algum tema — no limite, cada obra elabora-se como uma longa frase cujo sujeito sentimos à deriva na própria sedução que a habita, imaginando a possibilidade de uma outra ordem. Não admira que, neste ambiente de convulsiva consciência de uma beleza sem transcendência, Haydn tenha soado um pouco como... Strauss. É um elogio.
Dito de outro modo: para a escolha do concerto do ano, 27 de Março passa a ser o novo 31 de Dezembro.
>>> Site oficial da Orquestra Sinfónica de Gotemburgo.
>>> Site oficial de Gustavo Dudamel.
Dois poemas sinfónicos — Don Juan e Assim Falou Zaratustra —, a abrir a primeira parte e a preencher a segunda, dominaram o alinhamento, numa viagem de reencontro e redescoberta de um tempo remoto ma non troppo, e também do seu novelo de linguagens, tempo em que pressentimos a decomposição de um mundo ainda crente nas suas mitologias ("românticas"), dando lugar a uma época de progressivo desencanto moral e fragilização do factor humano. A esse propósito, vale a pena lembrar que as duas obras foram compostas, respectivamente, em 1889 e 1896.
Richard Strauss (1864-1949) |
Ao lidar com Strauss, justamente, Dudamel expõe o que nele é, de uma só vez, assunção da herança romântica e angustiada decomposição das suas ilusões redentoras. Daí a abordagem, quer de Don Juan, quer de Assim Falou Zaratustra, na sua plenitude mais primordial. A saber: já não obras organizadas em partes, satisfazendo estruturas mais ou menos codificadas, antes deambulações arfantes e poéticas, estranhamente racionais, cujo desafio existencial se confunde com as singularidades da sua própria duração.
Qual a "mensagem", então? Como recebemos as contradições do "donjuanismo" e a violência metafórica de Nietzsche para um mundo agora (des)assombrado com a morte de Deus? Pois bem, como uma escrita não de "ilustração" temática, mas de incessante procura de cristalização de algum tema — no limite, cada obra elabora-se como uma longa frase cujo sujeito sentimos à deriva na própria sedução que a habita, imaginando a possibilidade de uma outra ordem. Não admira que, neste ambiente de convulsiva consciência de uma beleza sem transcendência, Haydn tenha soado um pouco como... Strauss. É um elogio.
Dito de outro modo: para a escolha do concerto do ano, 27 de Março passa a ser o novo 31 de Dezembro.
>>> Site oficial da Orquestra Sinfónica de Gotemburgo.
>>> Site oficial de Gustavo Dudamel.