O triunfo de O Artista nos Oscars terá algum efeito prático na relação global dos espectadores com as memórias do cinema? Talvez, mas a conjuntura de que depende a nossa relação com a história (cinematográfica) é muito mais geral e problemática — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Março), com o título 'Como lidamos com a memória dos filmes?'.
Subitamente, na ressaca dos Oscars, observo alguns membros da classe jornalística (portuguesa e não só) entregues a um curioso processo de exaltação cinematográfica: a vitória de um filme como O Artista, evocando os tempos primitivos do cinema mudo, poderá ser o motor de um processo de redescoberta do património cinematográfico.
Curiosa perspectiva, sem dúvida. Desde logo porque não vi ninguém lembrar o mais óbvio: a visão mais ou menos crítica ou irónica do cinema pelo cinema é algo que provém também de tempos muito remotos, sendo indissociável de obras-primas de autores tão diversos como o americano Buster Keaton (The Cameraman, 1928) e o soviético Dziga Vertov (O Homem da Câmara de Filmar, 1929). Além do mais, não poderei esconder que O Artista me parece um exercício meramente pitoresco, vendo com alguma dificuldade que o seu entendimento da história dos filmes possa ter consequências tão admiráveis no território global da cinefilia. Nesse aspecto, não vejo comparação possível com a paixão de A Invenção de Hugo, de Martin Scorsese, esse sim um trabalho que nasce de uma elaboradíssima visão das memórias cinematográficas, para mais centrada no pioneiro Georges Méliès (1861-1938).
Ainda assim, a minha visão subjectiva não confirma nem desmente as potencialidades de qualquer um dos filmes num (eventual) processo de revisitação comercial e revalorização simbólica do cinema que se fez nas primeiras décadas do século XX. O que está em causa é algo bem diferente. A saber: o modo como a classe jornalística problematiza a relação com o património cinematográfico apenas a partir dos próprios filmes, escamoteando qualquer tido de responsabilidade no processo.
Ora, só por distracção ou cinismo se poderá pensar que a secundarização dos filmes nas programações televisivas (com honrosas excepções, há que referi-lo) é irrelevante na percepção que o espectador comum tem (ou não tem) dos primeiros cem anos de existência do cinema. Do mesmo modo, não é possível esquecer a futilidade que alguns discursos jornalísticos introduziram na descrição corrente de muitos filmes, reduzindo-os a meras acumulações de “efeitos especiais” ou, pior um pouco, confundindo os seus méritos com os milhões de dólares de orçamentos e receitas de bilheteira.
Deparamos, assim, com essa extraordinária cegueira cultural que insiste em descrever a visão corrente dos valores cinematográficos como um fenómeno mais ou menos anedótico, desligado dos poderes concretos do espaço televisivo e das linguagens jornalísticas. Como se a existência do cinema tivesse como cenário um mundo abstracto em que essas entidades mágicas, “filme” e “espectador”, existiriam numa relação imaculada de transparência e disponibilidade. Como se, afinal, cada entidade pública não funcionasse, voluntariamente ou não, como elemento específico de um continuado e multifacetado processo de (des)educação.