Continuamos a publicação integral de um extenso texto sobre o compositor Philip Glass publicado no suplemento Q. do Diário de Notícias, assinalando os seus 75 anos. O texto, com o título 'Acordar cedo e trabalhar todo o dia é o segredo de Philip Glass' foi publicado a 28 de janeiro.
“Glass pode ter-se tornado um compositor de ópera por acaso, mas está a definir um rumo nos seus termos. Os seus temas são escolha sua e ele procura as circunstâncias para fazer com que os trabalhos para o palco sejam viáveis. É o oposto da situação com o seu trabalho orquestral, que tem resultado de respostas frutíferas a vários pedidos.” (49)
A abertura de Glass à música para orquestra não aconteceu, de facto, como fruto de uma demanda pessoal, mas de desafios que lhe lançaram, muitos deles tendo na figura do maestro Dennis Russel Davies um importante parceiro de trabalho. Antes mesmo de ensaiar pela primeira vez o formato da sinfonia, experimentou em finais dos anos 80 o desafio de criar um concerto para violino, que compôs tendo em mente a figura do seu pai, criando algo de que ele tivesse gostado. Outros concertos, como o Tirol Concerto (2000) ou o Concerto para Violoncelo (2001) surgiram de encomendas concretas, a primeira do gabinete de turismo tirolês, a segunda para o Festival de Música de Pequim.
A sua primeira Sinfonia data de 1991 e representa uma reflexão nascida de momentos do álbum histórico Low, que David Bowie criou (contando com importante colaboração de Brian Eno) em 1977. Uma segunda sinfonia centrada nos universos de Bowie e Eno surgiria em 1994 na forma da Heroes Symphony.
O relacionamento próximo com figuras (e formas) da música pop é uma característica antiga e recorrente ao longo da obra de Philip Glass. Em 1983 colaborou com David Byrne (50) na composição de A Gentleman’s Honour, canção que integrou a música para The Photographer (1983). Três anos depois, a Byrne juntou as presenças de nomes como Suzanne Vega (51), Laurie Anderson (52), Paul Simon (53) ou Linda Rondstat (54) para criar Songs from Liquid Days, um ciclo de canções que representa aquilo que podemos ver como a maior aproximação da música de Glass face aos universos da música pop. Escreveu depois uma canção para a voz de Mick Jagger (55) e uma outra para Natalie Merchant (56). Fez arranjos para Marisa Monte (57) e Pierce Turner (58). Criou um ciclo para poemas de Leonard Cohen (59). Colaborou por duas vezes com Aphex Twin (60) e remisturou uma canção dos S-Express (61). Produziu e tocou com os Polyrock (62). Em 2003, o álbum Glasscuts apresentava remisturas de temas seus por músicos e DJs latino-americanos. Neste momento está a ser preparado o lançamento de um novo disco de remisturas, este com Beck entre os protagonistas. Ao mesmo tempo fez-se referência para novos e talentosos jovens compositores. Editou na Point Music um disco de Arthur Russell (63). E entre os que consigo trabalharam (e hoje o admiram) conta-se o promissor Nico Muhly (64).
A sua relação com os universos e figuras da música pop é de resto antiga. “No início dos anos 70 toquei muito com o ensemble na Alemanha e grupos como os Kraftwerk ou os Can tinham um bom relacionamento comigo, de franco diálogo.” (65). E é também sabido que entre uma das plateias que assistiram a Music with Changing Parts numa digressão europeia em inícios dos setentas, Bowie e Eno estava na plateia a assistir. Glass diz mesmo que o relacionamento com a pop é “gratificante” e que sempre o entusiasmou. De resto, concluía assim essa conversa: “Esta dicotomia que separa a música popular da clássica é recente! Os primeiros bailados de Stravinsky não seriam possíveis sem os estudos sobre a música popular russa de Rimsky Korsakov. Stravinsky trouxe para uma linguagem sinfónica as raízes da música popular do seu tempo. De certo modo continuo essa tradição. Há um puritanismo protecionista em relação à música clássica que me assusta. O diálogo entre as diversas músicas é entusiasmante e produtivo.” (66) Glass é, de resto, uma figura que não esgota a sua atenção pela música no ato de compor e interpretar o que escreve. Apesar de etapas ligadas a editoras como a CBS ou a Nonesuch, sempre teve editoras discográficas (primeiro a Catham Square, nos anos 70, mais tarde a Point Music, um selo do grupo Universal, nos anos 90 e, hoje em dia, a Orange Mountain Music).
Em inícios dos anos 80, num episódio do documentário televisivo Four American Composers, realizado por Peter Greenaway, Philip Glass descrevia assim os admiradores da sua música: “Há quem goste porque é barulhenta, e quem goste porque é rápida, há quem goste porque é muito clássica, há quem goste porque não é clássica, há quem goste porque soa a música indie e quem goste porque acha que não soa a música indie... Tem tudo a ver com a idade de cada um e com o que cada pessoa traz à música.” E deste aparente paradoxo nasceu uma voz que, transcendendo as fronteiras de género da música, podemos antes encarar como uma figura do nosso tempo.
49 - in Glass, A Portrait, de Robert Maycock, Sanctuary, 2002, pag 129
50 – David Byrne (n. 1952) Ex-vocalista dos Talking Heads, é um dos mais aclamados músicos do nosso tempo e também editor discográfico. Trabalhou com Philip Glass em The Photographer (onde assina a letra de A Gentleman's Honour) e Songs From Liquid Days (onde co-assina Liquid Days e Open The Kingdom).
51 – Suzanne Vega - Autora das letras de Lightning e Freezing, em Songs From Liquid Days
52 – Laurie Anderson - Autora da letra de Forgeting, em Songs From Liquid Days. É uma das vozes na gravação em disco da ópera Civil Wars (edidada em 1999).
53 – Paul Simon - Autor da letra de Changing Opinio, em Songs From Liquid Days.
54 – Linda Rondstat - Voz de Freezing e Forgeting, em Songs From Liquid Days. É a voz também na gravação em disco de 1000 Airplanes On The Roof.
55 – Mick Jagger - Vocalista dos Rolling Stones, canta a versão original de 'Streets of Berlin' na banda sonora do filme 'Bent', onde surge também como ator.
56 – Natalie Merchant - Canta 'Planctus', canção de Philip Glass estreada em 1997
57 – Marisa Monte - Glass assina o arranjo de 'Ao Meu Redor'
58 – Pierce Turner - Philip Glass fez arranjos de várias canções dos dois primeiros álbuns a solo do músico.
59 - Leonard Cohen - Glass compôs em 2007 um ciclo de canções a partir de poemas do 'Book of Longing' de Cohen
60 – Aphex Twibn- Colaborou com Glass em 'Icct Hedral', tema editado no EP 'Donkey Rhubarb'. Assinou depois uma remistura de 'Heroes' de Bowie, tomando como ponto de partida a abordagem à canção segundo Philip Glass na sua 'Heroes Symphony'.
61 – S-Express- Philip Glass assinou uma remistura de 'Hey Music Lover', editada em máxi-single em 1989.
62 – Polyrock - Banda new wave nova iorquina, contou com colaborações de Glass nos seus dois primeiros álbuns
63 – Arthur Russell - Glass editou 'Another Thought' na sua editora Point Music, em 1994
64 – Nico Muhly - Compositor norte-americano, trabalhou algum tempo nos Looking Glass Studios.
65 – in DN, 30 de Outubro de 1996
66 – ibidem