sábado, março 10, 2012

Nos 75 anos de Philip Glass (5)

Continuamos a publicação integral de um extenso texto sobre o compositor Philip Glass publicado no suplemento Q. do Diário de Notícias, assinalando os seus 75 anos. O texto, com o título 'Acordar cedo e trabalhar todo o dia é o segredo de Philip Glass' foi publicado a 28 de janeiro.

Pode ser uma das menos conhecidas das suas óperas, mas para nós (portugueses) e para o universo da nossa língua O Corvo Branco ocupa um lugar de inevitável destaque entre a obra de Philip Glass. Estreada em Lisboa em finais de 1998, integrando a reta final da programação da Expo, a ópera teve depois algumas representações no Teatro Real de Madrid e, alguns anos depois (em 2001), outras mais em Nova Iorque. Desde então vive quase silenciosa na memória de quem a viveu frente ao palco ou aos ecrãs da RTVE (uma vez que a televisão estatal espanhola assegurou a transmissão em direto de uma das récitas em Madrid, algo que não aconteceu em Lisboa). Ainda sem edição em disco, O Corvo Branco é hoje uma das raridades mais preciosas que podemos encontrar no chamado GlassEngine (33), uma base de arquivos sonoros de acesso gratuito que qualquer um pode consultar no site oficial do compositor.

A ideia para criar uma ópera que aludisse aos descobrimentos foi desafio lançado a Philip Glass longos anos antes da sua estreia no Teatro Camões a 26 de Setembro de 1998. “Começou por estar marcada para 1992, depois para 1994... Foi depois adiada para 1998.” (34). Sucessivos adiamentos projetaram a ideia sempre mais adiante, acontecendo contudo dentro do intervalo apresentado ao compositor (que, na verdade, em inícios dos anos 90, tinha já a música composta). Tendo recentemente trabalhado numa outra ópera sobre a temática dos descobrimentos pensada para assinalar os 500 anos da chegada de Colombo à América, Glass não mostrou inicialmente entusiasmo perante a proposta portuguesa. “Não me sentia com vontade de abordar novamente a mesma temática”, confirmou o compositor em entrevista ao DN (35), onde explicou ainda que a ideia de poder voltar a trabalhar com Robert Wilson lhe arrancou depois o sim. “Seria um desafio e sabia que nasceria uma coisa diferente. Não haveria hipótese de repetir o que tinha acabado de fazer em The Voyage (36). Partiu então para o Brasil, onde, durante o inverno, compôs a música. “Trabalhei com alguns amigos brasileiros que me ajudaram bastante. Naturalmente reparei depois que tinha de efetuar algumas alterações por questões de pronúncia. Mas foram mínimas... Estava muito envolvido com a cultura local, lusófona. Por isso, não me foi difícil concretizar o projeto.” (37).

O libreto, assinado por Luísa Costa Gomes, é visto por Philip Glass como uma força fundamental à solidez do projeto, e argumento que teve sempre em conta sobretudo nos momentos de impasse pelos quais passou a génese da ópera. “Ela mostrava-se muitas vezes desencorajada e dizia que a ópera nunca seria estreada... Ao que eu respondia sempre pela positiva. Talvez a sua atitude fosse a provocação de que eu precisava para continuar a acreditar. Mas, no fundo, sabia que devia estar confiante.” (38).

Philip Glass caracteriza O Corvo Branco como uma ópera bela e forte, descrevendo-a como “uma homenagem honesta a um importante período histórico e à cultura portuguesa” (39). No final, e como contou ao DN a poucos dias da sua estreia, ouvimos o narrador a ler os nomes dos homens que fizeram a aventura dos descobrimentos. “Esse momento é poderoso. Lembra-me o monumento aos mortos no Vietname que está em Washington. Descemos ao nível das pessoas individuais. As pessoas pequenas, que são quem faz a história. A escrita da música acompanha essa ideia e torna-se muito íntima no fim... Adquire uma espécie de perfil de nostalgia objetiva. Estamos a falar de pessoas reais. Muitas delas anónimas, mas que existiram. E essa sensação é poderosa. A ópera abre num registo totalmente diferente. Grande, épica... E caminha gradualmente para esses domínios mais íntimos.” (40)


Na sua origem O Corvo Branco deveria integrar um díptico do qual seria a conclusão. A primeira parte, que nunca chegou a compor e mora ainda num limbo (à espera de eventual renascimento), chamar-se-ia The Palace of Arabian Nights e deveria focar, como o compositor explicou por ocasião dos ensaios de O Corvo Branco em Lisboa, o desenvolvimento e expansão do islamismo. “O Corvo Branco cobre precisamente o resto da história. Do século XV ao século XXI” (41), num registo que cruza passado, presente e futuro muito comum a outros trabalhos em parceria com Robert Wilson. No livro Glass, A Portrait, o autor refere um desentendimento entre compositor e encenador como o motivo pelo qual essa outra parte do díptico nunca conheceu até hoje a sua concretização (42).

33 – GlassEngine – Base de dados de acesso gratuito que encontramos no site de Philip Glass. Permite escudar fragmentos de gravações várias obras suas, entre as quais O Corvo Branco. 
34 – in 'Uma Homenagem à Cultura Portuguesa', DN – 26 de Setembro de 1998 
35 - in 'Fumo Branco para os Corvos', DN – 26 de Setembro de 1998 
36 – ibidem 
37 – ibidem 
38 - 34 – in 'Uma Homenagem à Cultura Portuguesa', DN – 26 de Setembro de 1998 
39 – ibidem 
40 – ibidem 
41 - 35 - in 'Fumo Branco para os Corvos', DN – 26 de Setembro de 1998 
42 - in Glass, A Portrait, de Robert Maycock, Sanctuary, 2002, pag 135