Continuamos a publicação integral de um extenso texto sobre o compositor Philip Glass publicado no suplemento Q. do Diário de Notícias, assinalando os seus 75 anos. O texto, com o título 'Acordar cedo e trabalhar todo o dia é o segredo de Philip Glass' foi publicado a 28 de janeiro.
A demanda de uma linguagem pessoal parte muitas vezes da tentativa de busca de algo diferente. A resposta de Philip Glass “foi juntar a música de uma forma diferente. Se o 'sujeito' estava a expressar-se através de melodias, progressões tonais, crescendos e clímaxes então ficavam de fora. Os tijolos seriam antes os elementos mais pequenos e básicos: notas, batidas, tempo. O princípio organizador para a sua construção seria o ritmo”. E a ideia para essa nova forma de entender o ritmo encontrou-a na estrutura da música clássica do Norte da Índia. “Mas daí tirou apenas a ideia. Era ‘o elo perdido’. (16) Ele e outros compositores buscavam então, e como descreve Robert Maycock, o autor de Glass, A Portrait, um recomeço.”
Em meados dos anos 60, Glass vê a sua visão aliar-se a ideias entretanto em desenvolvimento por La Monte Young (17), Terry Riley (18) e Steve Reich, lançando as bases para um espaço que acabaria designado, pouco depois, pelo (então) crítico de música Michael Nyman (19) como minimalismo. A designação ganhou solidez com o passar dos anos, mas não foi unânime a princípio. Wim Mertens (20) lembrava, na introdução do livro (de absoluta referência no género) American Minimal Music (Kahn & Averell, 1983), que falar em música minimal era uma “descrição aproximada”, alertando para o facto de haver “outros nomes em circulação como música repetitiva, arte acústica e música meditativa” que identificava como “tentativas de rotulagem desta música”. O termo minimal, explicava ainda Mertens, “refere-se à redução extrema dos meios musicais que os quatro compositores americanos ( ) usam nos seus trabalhos”. Focando a descrição, refere ainda que o termo minimal, num “sentido estrito”, na verdade se pode aplicar apenas às obras iniciais de Reich e Glass.
Depois de talhar as bases e fundamentos da sua linguagem musical, contribuindo então para essa etapa de definição do que se veio a afirmar unanimemente como minimalismo – durante a qual compôs obras como Music in Similar Motion (1969), Music with Changing Parts (1970) ou Music in Fifths (1969) –, Philip Glass avançou pela exploração de novos horizontes e novos desafios. Minimal nos recursos e formas então usadas na escrita, não nas ideias, muito menos na vontade de se desafiar a si mesmo.
Em 1974 foi assistir em Brooklyn a uma representação do longo The Life and Times of Stalin, de Robert Wilson (21). Era um trabalho de palco com mais de dez horas de duração. Muita gente foi saindo da sala, mas Glass e a mulher, Sue, ficaram até ao fim. Conversou depois com o autor. Não se lembra de quem foi depois a ideia de marcar novo encontro. Mas começaram a almoçar juntos, regularmente, delineando ideias para um trabalho a dois. “Começámos pelo assunto. Uma vez que nenhum de nós tinha uma ideia sobre o que seria, este item implicou aturadas discussões ao longo de vários almoços.” (22) Interessado em figuras históricas, Robert propõe Chaplin. Depois Hitler. Glass contrapõe Gandhi mas Wilson não partilha o mesmo entusiasmo. Surge então Einstein. E pouco depois estavam a estruturar a obra a que chamariam Einstein on the Beach.
Toma então os músicos (e os recursos instrumentais – ou seja, teclados, cordas e sopros) do seu ensemble como ponto de partida. Juntos, Glass e Wilson decidem adotar uma estrutura não linear e não narrativa, procurando antes, mais que o contar de uma história, o traçar uma visão sobre a personagem e as suas ideias. Einstein on the Beach, que estreou no Festival de Avignon em 1976, acabaria por ser descrita como uma ópera e, quase 40 anos depois, é momento que reconhecemos de importância maior no reencontrar desta como uma forma vibrante e viva no panorama musical presente.
Da mesma altura (na verdade a composição estende-se de 1971 a 74) data também o histórico Music in 12 Parts, cuja interpretação dura horas a fio e representa “em muitas maneiras um sumário do que Glass tentou fazer até inícios dos anos 70” (23). Juntamente com Einstein on the Beach esta obra encerrava um capítulo. “O verdadeiro minimalismo acabou para mim quando completei Music in 12 Parts em 1974. Se olharmos para os livros de história e currículos universitários vemos que tendem a escrever sobre essas peças porque são as que conhecem.” (24). Em tempos, numa entrevista ao DN, explicou as suas razões: “Creio que [o minimalismo] teve o seu momento histórico, em meados de 60, e a sua importância fundamental foi o facto de ter assistido à reformulação da linguagem da música moderna por uma série de jovens compositores que rejeitava o que tinha aprendido da geração anterior. A diversidade da música nos nossos dias é tão vasta que apenas num circuito muito restrito se pode definir uma música por uma só linguagem, apenas nas escolas. A grande contenda entre a música serial e o minimalismo não interessa aos novos compositores. Estão-se nas tintas para isso. Estão mais entusiasmados com uma música baseada no caos ou no ruído, na world music, na tecnologia.” (25)
Também Keith Potter, autor de Four Musical Minimalists (Cambridge University Press, 2002), assim o entende, afirmando que a ópera estreada em 1976 “representa o final do interesse de Glass pelo minimalismo”, assim como Music For 18 Musicians (1974-76) o faz para Steve Reich.
16 – in Glass, A Portrait, de Robert Maycock, Sanctuary, 2002, p. 27
17 – La Monte Young (n. 1935) Outro dos quatro pioneiros do minimalismo norte-americano. De todos é aquele cuja obra em disco é mais escassa e mais difícil de encontrar.
18 – Terry Riley (n. 1935) O nome que completa o grupo dos quatro pilares do minimalismo norte-americano. O seu trabalho levou-o a dada altura pelos caminhos do jazz.
19 – Michael Nyman (n. 1944) Antigo crítico musical (é a ele que se atribui a aplicação da expressão “minimalismo” à música de Glass e demais três pioneiros do género). É autor do livro Experimental Music: Cage and Beyond, um dos primeiros títulos a teorizar sobre a obra de Glass. Desde meados dos anos 60 trabalha essencialmente como compositor, a sua música refletindo heranças dos minimalistas norte-americanas.
20 – Wim Mertens (n. 1953) Musicólogo, pianista e compositor belga. É autor do livro American Minimal Music, uma das primeiras obras de referência sobre o género. Como compositor a sua música traduziu também heranças dos minimalistas norte-americanos.
21 – Robert Wilson (n. 1941) Encenador, é um dos nomes maiores do teatro do nosso tempo. Trabalhou com Philip Glass nas óperas Einstein on The Beach, Civil Wars, O Corvo Branco e Monsters of Grace.
22 – in Música de Philip Glass, de Philip Glass, Quasi, 2007, pag 65
23 - in Glass, A Portrait, de Robert Maycock, Sanctuary, 2002, pag 29
24 – ibidem, pag 30
25 – in DN, 30 de Outubro de 1996