NAM JUNE PAIK Buda a Ver Televisão, 1974 |
Como vemos a televisão, não apenas como entidade social, mas como espelho de todo um sistema de ideias e valores? Ou seja: como vemos a televisão através da própria televisão? Esta crónica foi publicada no Diário de Notícias, com o título 'Futebol e ministros' — a sua data de publicação (17 Fevereiro) é anterior às reacções, de Bruxelas e do Governo português, aos factos ocorridos em torno da reportagem da TVI referida no texto [mais tarde voltarei ao assunto].
Há pouco mais de uma semana, ocorreram dois factos que vale a pena relembrar. Vale a pena, sobretudo, observarmos como a sua diversa visibilidade é sintomática do estado televisivo das coisas.
O primeiro tem a ver com o mundo do futebol, mais precisamente com a invasão de campo, pacífica, no final do Oliveirense-Académica (SportTV), com os estudantes [emblema do clube] a comemorarem o apuramento para a final da Taça de Portugal (facto que não ocorria há 43 anos). Foram momentos de genuína emoção que, aliás, os comentadores não deixaram de sublinhar. Mas, nos dias que se seguiram, nunca tiveram a mesma evidência informativa do milionésimo treino de um dos “grandes”, com um qualquer treinador a dizer essa coisa nunca ouvida: “Vai ser um jogo muito difícil...”
O segundo facto foi tema de abertura de diversos serviços informativos (por vezes, em obscena simultaneidade) e teve como protagonistas os ministros das Finanças de Portugal [Victor Gaspar, foto] e Alemanha. Assim, nos momentos que antecederam uma reunião em Bruxelas, uma câmara de televisão (TVI) registou um diálogo entre os dois ministros, despoletando especulações sobre eventuais diferenças entre o que se “sabia” e o que se “preparava”.
Escusado será dizer que, mesmo não esquecendo a margem de secretismo que o trabalho político pode legitimamente envolver, ninguém defende que os nossos governantes, seja qual for a sua ideologia, digam uma coisa em público e façam exactamente o contrário nos seus gabinetes ou reuniões. Mas não é isso que, aqui, está em causa. O que está em causa é a aplicação de uma estética de Big Brother na reportagem televisiva: “vigiados” por uma câmara “voyeurista”, os dois políticos foram objecto da mais pura pornografia informativa.
Que as televisões, de um modo geral, abracem tais imagens como um suplemento de “verdade”, eis o que, tristemente, já não surpreende. Mas não deixa de ser chocante que a classe política (do governo às oposições) se mostre globalmente indiferente a tamanha violência mediática. Não sei se temos os políticos que merecemos, mas é um facto que os nossos políticos parecem querer merecer a televisão que os instrumentaliza.