domingo, fevereiro 26, 2012

Nos 75 anos de Philip Glass (2)


Continuamos a publicação integral de um extenso texto sobre o compositor Philip Glass publicado no suplemento Q. do Diário de Notícias, assinalando os seus 75 anos. O texto, com o título 'Acordar cedo e trabalhar todo o dia é o segredo de Philip Glass' foi publicado a 28 de janeiro.

A discoteca peculiar da casa da família Glass (descendentes de emigrantes lituanos) foi um pouco como a cereja sobre o bolo de uma educação musical que, na verdade, seguiu um caminho tão igual ao de tantos outros estudantes de música sem que nada, a início, fizesse antever o que estava para acontecer. De facto, e como o próprio chegou a comentar, nem começou particularmente cedo a sua relação com a música. E em Talking Music recorda mesmo que, quando estudou na Juilliard School, verificou que todos tinham dado os primeiros passos aos seis anos, dois antes dele o ter feito. Mas aos oito já sabia que queria ser músico. E aos 12 começou a ajudar o pai na loja. Ou seja, antes mesmo de gravar a sua música já trabalhava com discos.

“Os músicos têm algo como um chamamento, um chamamento religioso. É uma vocação. E penso que acontece antes de sabermos que vai acontecer. A dada altura apercebemo-nos de que é a única coisa que encaramos com seriedade.” (8) Glass não identifica o chamamento, nem quando ocorreu, mas lembra-se de que a primeira peça musical que o marcou foi um trio de Schubert. Começou por estudar no Peabody Conservatory. E cedo entendeu que a flauta não seria o seu destino. Tocou peças de Vivaldi, Telemann e Mozart. Mas desistiu aos 15 anos, numa altura em que a música do seu tempo era a que chamava mais a sua atenção. E sob esses horizontes apontou destino a Chicago e, mais tarde, à Juilliard School of Music.

A primeira peça que compôs era serialista, “porque era assim a música moderna de então. Agora é engraçado... Fui um dos que iniciaram a grande rebelião em meados dos anos 60”(9). Algumas das primeiras obras por si compostas têm partituras ainda disponíveis, mas poucas, muito poucas (como é o caso do seu primeiro quarteto de cordas) chegaram a disco. “Até um compositor encontrar a sua voz o que ele fez até então não tem interesse. Creio que todos tendemos a soar como aqueles com quem estudamos. (10)... Dessas primeiras obras publicadas conta que “era música de escola, e podia ser interpretada”. Diz hoje que “não é nada de especial, mas na altura eram coisas importantes para um jovem estudante” (11). Reconhecendo que algo faltava nos seus horizontes, e que porque a técnica que tinha adquirido até àquele momento (tinha então 24 anos) era inadequada para aquilo que queria fazer, partiu para Paris, para estudar com Nadia Boulanger.

Em Paris ficou perto de três anos, com seis horas diárias estudando contraponto, solfejo e análise o resto do dia. As aulas não eram privadas, mas sim em grupo de quatro ou cinco alunos. E com solfejo dado pela assistente Mlle Dieudonne. Tecnicamente exigente, o ensino preparou-o para algo que, como reconhece, “muitos americanos não têm”(12). Rapidamente descobriu que tinha muito a aprender com a célebre professora. “Já tinha tido professores de composição e não estava muito interessado nas suas opiniões. No último ano que estudei com ela comecei a compor a música que hoje faço. Estou convencido de que ela teria achado que eu era louco. Estava aterrorizado com a perspetiva de lhe mostrar a minha música. Começara a fazer peças repetitivas que eram basicamente construções rítmicas. Quase não tinham harmonia nem contraponto, que era o que tinha estudado com ela. Não foi muito depois disso o momento em que voltei para tocar em Paris. E o meu pesadelo era imaginar-me a dar o concerto e ver a Mlle Boulanger na primeira fila. Nunca foi, mas tive sempre medo de que aparecesse. Disseram-me depois que ela conhecia a minha música. Alguém lhe perguntou e ela respondeu que tinha ouvido Einstein On The Beach, mas nunca fazia comentários sobre compositores.” (13)

Em 1965 esta era uma música que Glass caracteriza como estando ainda num estado de grande fragilidade. Porque não tinha ainda desenvolvido “um corpo de trabalho para sustentar o conjunto de ideias em que a música iria caber”. Era, por isso, muito sensível às críticas nessa etapa... “Isto foi anos antes de eu compreender profundamente o que estava a fazer.” (14) Hoje a sua relação é diferente. E nos planos iniciais do filme de Scott Hicks ele mesmo deixa claro que está imunizado contra opiniões negativas: “Há tanta música no mundo, não têm de gostar da minha. Há Mozart, há os Beatles, oiçam outra coisa... Têm a minha bênção... Oiçam outra coisa... Não quero saber...”.

Outra importante descoberta que data dos dias que viveu em Paris surge após uma ocasião de trabalho com Ravi Shankar, então ainda longe de ser o nome mundialmente reconhecido (o que só aconteceria após a sua descoberta pelos Beatles, poucos anos depois). O músico indiano estava a preparar-se para gravar uma banda sonora em estúdio e precisava de um músico que conseguisse escrever numa pauta as notações necessárias para que outros músicos o acompanhassem em estúdio. No primeiro dia não fizeram senão conversar. Mas quando Ravi começou a tocar o sitar, Glass levou horas até conseguir compreender a arrumação no espaço daquela música. E dessa descoberta nasceu uma visão, que abriria portas para o caminho de descoberta de uma linguagem própria. “O que aprendi com o Ravi foi que a estrutura rítmica se pode transformar numa estrutura musical maior. Na tradição ocidental isso não acontece.” (15). E a revolução ficou mais perto.


8 - in Talking Music, de William Duckworth, Schriummer Books, 1995, p 321 
9 – ibidem, p 324 
10 – ibidem, p 326 
11 – ibidem, p 327 
12 – ibidem, p 329 
13 – ibidem, p 330 
14 – ibidem, p 330 
15 – ibidem, p 330