sábado, fevereiro 25, 2012

Nos 75 anos de Philip Glass (1)


Iniciamos hoje a publicação integral de um extenso texto sobre o compositor Philip Glass publicado no suplemento Q. do Diário de Notícias, assinalando os seus 75 anos. O texto, com o título 'Acordar cedo e trabalhar todo o dia é o segredo de Philip Glass' foi publicado a 28 de janeiro.

Não é fácil encontrar aquele instante na vida de um músico em que se abre um caminho que o leva depois numa viagem tão pessoal que se torna referência e a história reconhece. As aulas em Paris, nos anos 60, com Nadia Boulanger (1) terão sido marcantes. A descoberta da música indiana ao lado de Ravi Shankar (2), em 1965, terá sido reveladora e determinante para o lançar de uma linguagem pessoal. Mas Philip Glass não seria certamente o mesmo homem disposto a ser desafiado (e a fazer da sua visão um desafio) se não tivesse como pai o dono de uma loja de discos com um hábito pouco vulgar. Com vontade de compreender o porquê do insucesso dos discos que não vendia, levava para casa as gravações dessas obras que, depois, escutava com atenção para entender o que de “errado” nelas havia. Aquela música (talvez invulgar para alguns, mas banda sonora caseira para o jovem Philip Glass) representou eventualmente um universo de revelações.

Numa entrevista mais tarde publicada em livro, Philip Glass recorda esses dias de descobertas invulgares. “O meu pai era um autodidata. E foi parar a este negócio mais ou menos por acaso. Gostava muito de música e começou a levar para casa os discos que não vendia na loja. ( ) Houve uma sonata para violoncelo de Shostakovich que alguém gravou ( ). Ele queria saber porque é que as pessoas não compravam o disco ( ) Ouviu-o vezes sem conta e acabou a gostar da música. ( ) A sua coleção de discos era muito estranha. Não tinha as sinfonias de Beethoven porque esses eram os discos que se vendiam bem. A literatura standard não era a que tínhamos em casa. Tínhamos coisas estranhas. Compositores americanos como Foote (3)... Uma das primeiras gravações de Gottschalk (4). Tinha também música para piano de Debussy que não se vendia muito bem nos anos 40. Depois mudou-se para os LP e foi uma inundação de música.” (5).

Mais de 60 anos depois já ninguém imagina que alguém possa ter uma pequena loja de discos generalista como negócio. Mas houvesse hoje um dono de uma eventual loja que procurasse fazer, como o pai de Philip Glass, uma escuta aos discos que não vende, neles não encontraria certamente os títulos do filho do lojista de Baltimore. Depois de uma etapa de vida precária (chegou a trabalhar como taxista e como canalizador em Nova Iorque, montou a dada altura uma empresa de mudanças com Steve Reich (6) e só depois dos 41 anos conseguiu passar a viver definitivamente da sua música), Philip Glass tornou-se não apenas um dos mais célebres compositores do nosso tempo como é certamente um dos que mais discos vende pelo mundo fora. Um pouco por acaso tornou-se um compositor de ópera (uma delas, O Corvo Branco, é cantada em português e estreou-se em Lisboa em finais da Expo 98). Tem nove sinfonias estreadas (e se se confirmar o que em tempos me contou, a décima já estará composta) (7). São inúmeras as obras orquestrais que vai compondo em resposta a solicitações. Tem peças para piano que ainda hoje apresenta em recitais. Uma multidão de bandas sonoras (já com três nomeações para os Óscares, nenhuma delas ainda transformada em estatueta). Assinou colaborações com nomes que vão de David Byrne e Paul Simon a Marisa Monte ou Mick Jagger, criou duas sinfonias baseadas em discos de David Bowie, deu recitais com Patti Smith... Quando, no documentário de Scott Hicks, Glass: a Portrait of Philip in 12 Parts, lhe perguntam se tem um segredo, a resposta é simples e direta: acordar cedo e trabalhar o dia inteiro.
  
1 - Nadia Boulanger (1887-1979) Compositora e professora francesa, ensinou muitos dos grandes compositores, maestros e instrumentistas do século XX. Além de Philip Glass foram seus alunos, entre outros, Aaron Copland, Quincy Jones, Astor Piazzolla, Elliott Carter, Egberto Gismonti, John Eliot Gardiner ou Michel Legrand. 
2 – Ravi Shankar (n. 1920) Um dos nomes maiores da música indiana. Em 1965 trabalhou com Philip Glass na banda sonora de Chappaqua. Em 1990 os caminhos dos dois músicos voltaram a cruzar-se no álbum conjunto Passages. 
3 - Arthur Foote (1853-1917) Compositor norte-americano, integrava o grupo dos 'Seis de Boston'. 
4 – Louis Moreau Gottschalk (1829-1869) Compositor norte-americano e virtuoso do piano. 
5 – in Talking Music, de William Duckworth, Schriummer Books, 1995, p 323 
6 – Steve Reich (n. 1936) Tal como Philip Glass foi um dos principais rostos do minimalismo norte-americano, apresentando obras determinantes para a afirmação do género entre 1965 e 1976. 
7 – in DN, 23 de Junho de 2007