HENRI MATISSE A Lição de Pintura, 1919 |
Em muitos casos, as televisões encenam a condição dos portugueses como uma estatística à beira do anedótico. E a "crise" é tema obrigatório — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 Janeiro), com o título 'Viva a crise de 2013!'.
* Sou dos que pensam que as televisões (todas as televisões) não deviam promover a cultura niilista a que, nos seus serviços informativos, se submeteram. Escusado será dizer que não se espera, nem se deseja, que as televisões mascarem a complexidade do momento histórico, político e económico que vivemos. Em todo o caso, uma coisa é fornecer instrumentos para lidar com essa complexidade; outra, bem diferente, é repetir incessantemente um discurso catastrofista que se alimenta da sua própria retórica, independentemente dos factos que refere ou analisa.
* Os exemplos proliferam. Pelo seu valor sintomático, vale a pena referir um deles. Encontrei-o no site da TVI24. É uma peça intitulada “Portugueses comentam mensagem de Ano Novo de Cavaco”, transmitida no dia 2 de Janeiro. Tem um minuto e meio, o que nos permite perceber que, em televisão, há quem acredite que em tal duração cabe a visão dos “portugueses”. E, pelos vistos, há também quem considere que registar palavras de sete cidadãos anónimos no Rossio é um bom espelho desses mesmos “portugueses” (além do mais, tendo em conta a duração da peça, imagine-se o tempo de antena de cada um dos cidadãos).
* Mas o mais extraordinário é a conclusão da peça. Assim, aproveitando a interrogação deixada por um dos entrevistados (“O que é que vai ser do nosso país, não é?”...), a voz off remata: “Fica a pergunta. A resposta poderá chegar em 2013 com uma reportagem onde os portugueses usem menos a palavra crise.”
* Ora, de facto, a palavra “crise” era utilizada por um único entrevistado e... apenas uma vez! Em boa verdade, fazem-se reportagens destas apenas para “ilustrar” um discurso estereotipado. Mais do que isso: entende-se a reportagem não como um discurso, mas um lugar (repare-se como se diz “onde os portugueses” em vez de “em que os portugueses”).
* Deixo uma confissão amarga: como cidadão eleitor, a minha perplexidade só tem crescido ao longo das últimas décadas da nossa democracia. Quero eu dizer: não compreendo como a esmagadora maioria da nossa classe política não tem uma palavra a dizer sobre esta visão grosseira do que somos, dizemos e pensamos.