segunda-feira, janeiro 02, 2012

O melhor de dois mundos

Philip Glass
'Songs From Liquid Days' 
(CBS, 1986) 


É pop e não é pop. É clássico e não é clássico. Os jogos de paradoxos que eventualmente possam morar na identidade da música de Philip Glass ganharam expressão maior em Songs From Liquid Days, um ciclo de canções que o compositor criou para edição em disco em meados dos anos 80. O compositor tinha há alguma experiência na criação de música vocal, em concerto através dos seus primeiros trabalhos para os palcos da ópera. Mas a ideia de trabalhar mais a fundo a canção era um desafio a enfrentar.

A canção, que o compositor identifica nas notas que acompanham o disco como a “mais básica das formas de expressão musical” era o objectivo a trabalhar, o ponto de partida encontrado em palavras pedidas a David Byrne, com quem já antes havia trabalhado. A ele juntou as colaborações de Paul Simon, Suzanne Vega e Laurie Anderson, figuras com experiência em campos pop/rock que admirava não apenas pelo seu trabalho de composição mas também pela carga poética da sua escrita. Só depois de encontrados os poemas avançou a composição. E, no fim, e através de um casting, as vozes. Assim se juntaram num mesmo disco, nomes como os acima citados e ainda os de Linda Rondstat, Douglas Perry, The Roches ou o Kronos Quartet. Songs From Liquid Days, que precede futuras composições e arranjos para as vozes de Marisa Monte, Pierce Turner, Mick Jagger ou Ute Lemper e, mais tarde, um novo ciclo de canções com poemas de Leonard Cohen, é um herdeiro directo da relação próxima com a cultura popular partilhada por algumas figuras da “vanguarda” nova-iorquina dos anos 70 e, ao mesmo tempo, um fruto do progressivo trabalho para lá dos fundamentos básicos do minimalismo nos quais nascera a linguagem musical de Philip Glass. Notam-se ainda não apenas sinais de um mais largo espectro de soluções nos arranjos (que Glassworks, de 1982, já havia sugerido) e ainda ensinamentos colhidos em primeiras experiências na ópera.

Disco que revela assim uma ideia algumas numa terra de ninguém entre mundos distintos, Songs From Liquid Days pode ser hoje encarado como um marco fundamental na história da abolição progressiva de velhas barreiras de género na música que hoje tanto leva um Sufjan Stevens a desafiar os horizontes da linguagem pop/rock num Age of Adz ou um Osvaldo Golijov a integrar as novas electrónicas em Ayre.