sábado, janeiro 28, 2012

Entrevistas de arquivo:
Philip Glass, 2007


Mais uma entrevista de arquivo com Philip Glass. Esta corresponde à transcrição integral de uma conversa com Philip Glass numa entrevista publicada no DN em 2007 por ocasião de mais uma deslocação do compositor a Lisboa, dessa feita para um recital de piano.

Em tempos, numa entrevista para um dos quatro documentários de uma série sobre novos compositores americanos, descreveu o seu público como estando dividido entre os que gostavam da sua música porque era clássica. E os que dela gostavam porque não era clássica…
Gosto desse paradoxo. E tem ver com a minha história pessoal, nos dias em que vivia em Baltimore. O meu pai tinha uma pequena loja de discos, muito diferente das que existem hoje. Parecia uma padaria... Trabalhei na loja a partir dos 12 anos, e então escutei toda a música que por lá havia, fosse música hillbilly (ainda não se lhe chamava country & western nessa altura), fosse clássica, contemporânea ou jazz. Tudo me era familiar. Nunca achei que umas músicas fossem melhores que outras. Havia compositores talentosos em todas as formas musicais. Assim como havia gente sem talento em todas elas, também! Gostava de música bela, fosse de Bernstein, Boluez, Eliot Carter ou... Paul Simon! O que me importava mais era já a qualidade da invenção e a espontaneidade da expressão. E isso encontramos em todas as formas de música. Estudei anos depois em Chicago, onde ouvi, ao vivo, Charlie Parker, John Coltrane, Sonny Rollins, mais tarde Ornette Coleman e Pharaoh Sanders... Eu não era improvisador, mas ouvia e conhecia aquela música! Admirava-a e respeitava-a. Posso dizer que o meu gosto sempre foi muito vasto e que nunca criei barreiras. Tentei sempre olhar sobre essas barreiras.

Há já muitos anos que a sua música se afastou do que se considerou ser “minimalista”. Mas esse é ainda o rótulo que, invariavelmente, é aplicado por muitos a quase tudo o que faz...
É uma descrição que já não serve o que faço há algum tempo. Colou-se a mim por um tempo, é verdade. Quando eu era menino, sempre que se falava do Debussy ou Ravel usava-se a palavra “impressionistas”. Já não se ouve dizê-lo... Por isso essas coisas desaparecem. Não é relevante. Por exemplo, n’O Corvo Branco, cuja música data de 1992, há aspetos minimalistas, mas sobretudo elementos mais líricos. Estas coisas passam com o tempo. E não me preocupam.

A sua recente oitava sinfonia desafiou os seus próprios cânones. Revelou novos sentidos numa demanda pessoal. É importante essa noção de desafio colocado a si mesmo ao compor?
Não costumo desafiar quem me ouve, mas sempre a mim mesmo. Quem tem um trabalho criativo deve desafiar as suas limitações. E eu estou a tentar desenvolver a minha linguagem e a minha visão musical. E para cada desafio coloco à minha frente expectativas distintas.

Segue-se, como mandam os números, a nona, que foi a última sinfonia de vários compositores. Beethoven, Mahler (que nunca terminou a décima), Bruckner (que a deixou, inclusivamente, incompleta), Dvorák…Teme a eventual “maldição” da nona?
Bom, essa “maldição” não travou Shostakovich! (risos) Mas já tenho um plano! Vou tentar que me encomendem a nova e a décima ao mesmo tempo. E farei ambas no mesmo ano. Gostaria de chegar à 12ª sinfonia... As últimas de Shostakovich são muito interessantes.

Em Lisboa apresentou uma série de peças para piano. O piano é ainda o melhor amigo do compositor?
Creio que é. Mas seu eu quem o diz. E creio que o digo porque tenho a idade que tenho. Se tivesse uns 30 anos, estaria a trabalhar com computadores. O piano ainda é o meu instrumento prioritário em termos de composição. Mas não faço quaisquer objecções ao computador. O computador nunca o será um instrumento com o peso do piano para mim, porque a curva de tempo exigida para aprender uma nova tecnologia teria de me afastar da composição e da interpretação por uns tempos. É preciso tempo para aprender a usar qualquer nova tecnologia. Mas é também verdade que, especialmente no trabalho para cinema, acabo por usar já, de certa maneira, os computadores. Tenho muitos computadores no estúdio e reconheço que são máquinas muito úteis. Não tenho nada contra eles… Mas o tempo que ainda puder gastar a fazer música e a tocá-la é para mim mais importante que aquele que teria de gastar para aprender qualquer nova tecnologia.

Fez 70 anos em Janeiro, mas na altura não os comemorou publicamente com discos ou concertos...
Não tinha tempo... Estava muito ocupado (risos)... Mas, pronto, o que quer que faça este ano é uma celebração... Vou estrear o Book Of Longing, baseado em poemas do Leonard Cohen... Mas podia estrear essa obra no dia dos meus anos ou num outro dia qualquer. Não quero gastar tempo com festas se tenho outras coisas para fazer. E divirto-me muito mais a escrever nova música que a celebrar a antiga. Em Lisboa toquei música antiga. E é verdade que nos últimos anos tenho regressado por vezes a peças que já escrevi há bastante tempo. Mas tenho outras maneiras de as escutar hoje, como se estivesse a aprender de cada nova vez que as escuto.

Há uma nova geração de músicos, de um Rufus Wainwright a um Owen Palett, que o admira e chega mesmo a citá-lo. Como lida com estes jovens admiradores?
O que fazem é tremendamente elogiante! Eu não nasci em Nova Iorque, mas mudei-me para a cidade aos 19 anos para estudar música e porque queria estar no espaço musicalmente mais ativo que existisse. E Nova Iorque ainda é assim. Conheço muitos jovens compositores e alguns trabalham inclusivamente no meu estúdio. Interessa-me o que eles fazem, mesmo que eles não se interessam pelo que faço.

Além da sua obra, a sua postura profissional é também referida como novo paradigma...
Creio que ao longo da minha vida desenvolvi maneiras diferentes de trabalhar como compositor. Tive de aprender a ganhar a vida trabalhando tão ativamente como performer, assim como enquanto compositor. Para pessoas como um Rufus Wainwright e tantos outros da sua geração, esta atitude interessa-lhes tanto como a própria música. Muitos jovens compositores interessam-se pela música para cinema e também pela música para publicidade. Quando era jovem, fazer música para publicidade era considerado um trabalho menor... E de evitar...

Mas não o evitou!
Tinha de ganhar a vida! Para ser franco não tinha escolha. E houve compositores que o fizeram durante anos a fio. Nunca me envergonhou. Até porque me ensinou a perceber o que era o grande público! E neste mundo, isso é útil. Hoje, os compositores mais jovens interessam-se por todas as formas de música, da experimental à soul... A ideia do metier do compositor envolve hoje uma enorme variedade de práticas.

Nos últimos 25 anos, o seu trabalho para o cinema levou-o a outros e mais vastos públicos. É um veículo interessante?
Comecei a fazer música para cinema em projetos underground, como o Koyaanisqatsi, do Godfrey Reggio. Os primeiros sete ou oito filmes em que trabalhei foram produções independentes, quase sem distribuição, para pequenas plateias. Mas nestes 25 anos, muitos desses filmes viraram casos de culto, e alguns são hoje muito conhecidos. Aos poucos comecei a trabalhar em filmes mais comerciais. O primeiro foi o Mishima. E mais tarde o Kundun, de Martin Scorsese.

Recentemente trabalhou em blockbusters.
O primeiro em que trabalhei foi As Horas. Recebi uma nomeação para os Oscar. É interessante, porque para ser aceite em Los Angeles foi-me mais difícil ser aceite como compositor para cinema que como compositor de música “séria”. Não acreditavam que pessoas como eu poderiam fazer música para cinema! Interessa-me muito a associação da música à imagem, tanto no cinema como no teatro, na ópera e dança. O ser ou não ser comercial não é critério para mim. Interessa-me sobretudo o talento do realizador ou o trabalho da fotografia. Nos últimos tempos fiz a música d’O Ilusionista e o Diário de Um Escândalo. Foram filmes vistos por pessoas que nunca iriam a um concerto meu. E agora sabem o meu nome! Ao dar concertos pelo mundo, há muitas pessoas que aparecem porque me descobriram em bandas sonoras!

Chegou a estar pensado para fazer a banda sonora de The Inner Life Of Martin Frost, de Paul Auster...
É verdade. Mas não aconteceu. E quando as coisas pareciam indicar nesse sentido, já estava com a agenda cheia com o trabalho para o novo de Woody Allen e um outro projeto de colaboração com Leonard Cohen que ainda este ano devo gravar. Estou também a preparar uma ópera para a San Francisco Opera. Quando o Paul Auster conseguiu o orçamento para podermos trabalhar, já estava atulhado em trabalho! Mas há muito que falamos em colaborar. E um dia teremos de o fazer. Tenho pena que não tenha sido agora, porque gosto da história

É diferente fazer música para filmes antigos? Falo em concreto de trabalhos que fez sobre La Belle et la Bête de Jean Cocteau ou Drácula, de Todd Browning.
O que há de muito interessante ao trabalhar em filmes antigos é o facto do realizador e o produtor não estarem por perto. E aí funcionamos como compositores, da mesma forma como se estivéssemos a trabalhar numa ópera. Em Hollywood, e até mesmo em projetos independentes, nunca é assim. O Godfrey Regio considerava-me co-autor, pelo que nesses filmes [Koyaanisqatsi, Powwaqatsi e Naqoyqatsi] discutimos tudo juntos. Mas é caso raro no cinema. Quando fiz o La Belle Et La Bête obtive autorização para o que entendesse. Com o Dracula foi diferente. Fui contratado pela MGM, que queria reeditar o filme [de 1931]. Fiz a música e eles aceitaram… Nunca tive de falar com o Todd Browning nem o Bela Lugosi… Nem podia! (risos) Em muitos filmes atuais, os atores principias por vezes chegam a ter direito a ouvir e comentar a música que fazemos… Há gente muito talentosa a trabalhar no cinema. Mas fazer um filme por vezes implica certas limitações artísticas. Não diria que chegam para me desencorajar. Tento fazer o melhor que posso, respeitando sempre as condições. E por vezes alcançam-se resultados belos. Creio que isso aconteceu n’As Horas.

Aí, o realizador Stephen Daldry quase parece ter pensado o filme para servir a música. Parece mesmo uma ópera…
E há em Hollywood quem pense que essa é uma ideia muito má!... Há em Hollywood quem diga que a minha música nem é de cinema, porque tem presença a mais… Eu acho que é antes uma vantagem. E a verdade é todos os anos chegam uns telefonemas e consigo sempre trabalho num ou outro filme.

Passaram nove anos sobre a estreia da ópera O Corvo Branco, que foi apenas apresentada em Lisboa e Madrid, e ainda não houve qualquer edição (em disco ou DVD) da mesma. Está nos seus planos gravá-la?
O que se passa é que, hoje, a gravação de óperas já não é financiada por editoras. Mas eu continuo a gravá-las. E recentemente concluí até a gravação de The Voyage, que foi composta antes de O Corvo Branco. Ou seja, esperei 14 anos para o fazer… Quero começar a gravar O Corvo Branco brevemente. Primeiro as partes instrumentais e só depois os cantores. Vou precisar de uns dois anos antes de o poder fazer. Mas essa é uma ópera que considero como importante entre as que já fiz. E uma das razões pelas quais a quero gravar é o facto de quem nunca a viu poder querer ouvi-la. Ao saber da sua gravação, a notícia vai circular e a ópera deixará de ser um segredo. E espero que, depois, possa haver mais produções de O Corvo Branco.

Ter uma editora própria (a Orange Mountain Music) ajuda-o, assim, a fazer o que outras editoras hoje não podem fazer?
O negócio da música mudou. As editoras começam a enfrentar finalmente a necessidade de ter a música acessível por donwload, o que já fazemos há algum tempo. Vendo mais discos pela minha editora que pela Warner ou Sony. A grande vantagem é que, ao colocar um disco no meu catálogo, ele fica ali para sempre. Assim posso pensar num ciclo de vida mais longo para os discos (e as suas vendas). Noutras editoras, quando os discos não vendem, são descatalogados e desaparecem. Na minha visão, de longo prazo, posso pensar em termos de várias gerações. A mudança para companhias mais pequenas e independentes traz benefícios para o ouvinte e o compositor. Hoje, muita da minha música está disponível na Amazon ou no iTunes. E penso sempre assim ao editar um novo disco. Faço ainda CDs, porque ainda os posso vender. Mas penso prioritariamente nos downloads

Através da sua própria editora tem colocado no mercado uma série de gravações antigas. Ou seja, pode colocar o seu arquivo pessoal, aos poucos, em disco…
Começámos agora a editar uma série de gravações a que chamámos “archival recordings” [gravações de arquivo], com peças que fui gravando nos anos 80 e 90, que vamos colocar no mercado. Nos anos 90 reparei que tinha as fitas de muitas gravações da minha música e resolvi começar a editá-las. São discos fáceis de fazer, porque já tenho as gravações. E podem interessar a quem goste de música. Em poucos anos de atividade, a editora chegou aos 40 títulos. Espero poder duplicar esse número.

Mantém relacionamentos com outras editoras?
Recentemente falei com o diretor da Nonesuch, de quem sou amigo. Ele disse-me que para cada artista só pode gravar editar um disco por ano. Ao passo que eu posso, por mim, lançar uns seis ou sete! Ele riu-se e disse não o podia fazer, mas que compreendia o que eu estava a fazer. Estou a tentar criar um legado musical, que Quero preservar para as gentes do futuro. Para mim é muito importante poder atuar desta maneira.

Há anos que a Nonesuch fala da eventual edição de uma caixa de gravações suas...
Vão lançar uma caixa de dez CD. Estamos a trabalhar nela neste momento. Temos uma boa relação, apesar dos objetivos das nossas editoras serem diferentes! Na minha editora sou o compositor, mas também o publisher.

Este ano uma das suas edições na OMM, o The Witches Of Venice, surge de uma gravação de arquivo sua…
Aí está mais um exemplo de algo que veio do meu arquivo pessoal. Essa gravação estava feita há uns dez anos! Foi feita para um evento em Milão, no Scala… E só recentemente reparámos que eu era o dono da gravação e que tinha as fitas comigo! A série “archival recordings”, que agora iniciei, também creio que vai revelar coisas interessantes. De há uns anos para cá comecei a juntar as fitas e a guardá-las. Agora dou-lhes uso.