Esta entrevista foi originalmente concedida por Philip Glass por ocasião da visita a Portugal para apresentar Drácula, no Coliseu dos Recreios. O texto foi originalmente publicado no DN a 23 de Setembro de 2000 com o título 'O corvo branco está vivo!'.
Depois dos ensaios e da estreia na Expo 98 que tal foi para si ver, finalmente concretizado o projecto antigo da ópera o Corvo Branco?
Foi muito bonito. Eu e o [António] Mega Ferreira começamos a falar nesse projeto em 1988 e em 1991 já tinha toda a música composta. Por essa altura ele disse-me que a ópera seria estreada algures nos últimos dez anos antes de 2000... Mas os anos foram passando e senti-me cada vez menos encorajado. Finalmente estreámo-la em 1998.
'O Corvo Branco' |
Há planos para mais produções de O Corvo Branco por outras companhias de ópera nos próximos anos.
Este ano foi apresentado um excerto da ópera no Carnegie Hall, em Nova Iorque.
É verdade. Apresentámos o quinto ato e com boas impressões entre o público. Traduzimos o texto para inglês e foi o Bob Wilson quem o leu. As pessoas gostaram mesmo e creio que querem conhecer melhor a ópera. Por isso penso que O Corvo Branco não desapareceu. Tem futuro.
Tem um calendário de gravações carregado. Ainda recentemente regravou as óperas Satyagraha em nova versão e Les Enfants Terribles...
É verdade. Recentemente terminámos a gravação da Sinfonia Nº 5, um grande trabalho coral, que vamos apresentar ao vivo em Nova Iorque na próxima semana. Tem a dimensão de uma ópera esta nova sinfonia. Entretanto terminei o trabalho numa ópera de facto: chama-se Penal Colony e é baseada numa história de Kafka. Há poucos dias passei pela Áustria para estrear o Concerto para Piano. Tenho tido uns dias bons...
Pensa ser possível gravar, um dia, O Corvo Branco?
Espero poder fazê-lo, sem dúvida. Vou esperar pelas novas produções que estão já em agenda para, então, gravar a ópera. Mas não acontecerá antes dos próximos dois anos. Sei que pode parecer um período de tempo muito longo mas na verdade não é.
Tem ainda em mente a concretização da ópera Palace of Arabian Nights, que em Lisboa [em 1998] falou como uma espécie de primeira parte de O Corvo Branco?
Ainda está nos meus planos mas sem data ou algo que se pareça.
Ao ouvir a Sinfonia Nº 5, um dos andamentos, Compassion, parece evocar o último ato de O Corvo Branco?
É verdade... É isso mesmo... Fui apanhado! (risos). O que acontece é que, por vezes, ao compor uma peça, posso citar elementos de outra. Algo aparece que parece que ali fica perfeito. E faço-o porque as peças não estão concluídas. E não me censuro a mim mesmo. Se as citações surgem de uma forma natural e orgânica deixo-as ficar sempre. Mas poucas pessoas dão por esses elementos.
Foi a própria companhia cinematográfica quem sugeriu o trabalho. Eles tinham não só este filme como toda uma série de outros clássicos a preto e branco dos anos 30 que surgiram originalmente sem banda sonora. O que se passou é que a companhia estava à beira de perder o copyright desses filmes. E a menos que fosse operada uma mudança drástica, os direitos de exploraçãoo seriam perdidos.
Daí a encomenda...
Exactamente. Daí que era fácil essa ideia de colocar uma banda sonora onde, antes, não havia música. Perguntaram-me se estaria interessado e a início não mostrei muito interesse. Mas assim que vi o filme, que é magnífico, fiquei conquistado. Há uns momentos em que não há diálogo... Pensei que poderia criar um melodrama através da introdução de uma música contínua sobre a qual os diálogos poderiam sobreviver. O melodrama é uma forma antiga pouco em prática nos dias que correm. E indica que estamos perante uma peça com música. E o filme foi rodado como se de uma peça se tratasse. Na verdade o argumento do filme foi escrito a partir de uma peça baseada no Drácula de Bram Stoker.
A sua música torna mais visível ainda o carácter romântico do filme de Tod Browning.
Precisamente. Falaram-me em tempos de um filme de terror. Mas não... Drácula é um filme romântico. O género do filme de terror só aparece depois de Drácula. O Drácula original vem de um livro do século XIX e, na altura, o terror não era um género literário. Este Drácula não é um filme de terror. É, sim, um filme sobre a transfiguração, a transformação da personagem Drácula. Temos de ver a perspectiva em que a história é criada que remonta aos hábitos e gostos do século XIX. No filme não há uma gota de sangue. Por tudo isto pareceu-me ideal uma partitura para um quarteto de cordas e não para uma banda sonora electrónica bizarra e sombria. O quarteto de cordas transporta uma noção de introspecção.
Tal como La Belle et la Bête, esta é uma música que nasce diretamente de imagens do cinema...
O que estou a tentar fazer com este tipo de trabalho é um esforço de devolução de interpretação ao universo do cinema. O cinema hoje não é um espaço de espetáculo com intérpretes na sala... É projetado num ecrã e é mecanicamente reproduzido. E o cinema é uma arte performativa muito interessante. Há quem diga que é a forma artística do século XX!... Mas o que o cinema tem de interessante não é facto de, apesar de ser uma arte performativa, não é uma arte interpretativa. De certa forma o que fiz em Drácula e La Belle et La Bête são tentativas de devolução da interpretação ao cinema.