Esta é a transcrição de uma entrevista que fiz com Philip Glass por ocasião da estreia mundial de O Corvo Branco, em 1998. A ópera integrou a programação da Expo 98 e estreou no Teatro Camões, em Lisboa, a 26 de Setembro desse ano. Esta entrevista foi publicada na edição desse dia no DN, com o título "Fumo branco para os corvos".
O Corvo Branco nasceu na alvorada da década. Naturalmente não ficou parado à espera da estreia...
Pelo caminho escrevi cinco óperas, três sinfonias, dois quartetos de cordas... Quase uma pequena vida!
É comparável com alguma das suas outras óperas? The Voyage, por exemplo, é centrada em Colombo, outro marinheiro...
The Voyage foi escrita na mesma altura em que trabalhei na composiçãoo de O Corvo Branco. Esta é uma peça mais lírica e, como representou um trabalho conjunto com o Bob Wilson, implicou necessariamente uma outra abordagem estética. Temos uma maneira muito especial de trabalhar em conjunto. O Corvo Branco lembra-me, por isso, uma obra que fizemos em 1984: Civil Wars. A abordagem à composição e criação foi semelhante. Mas aqui tivemos um texto assinado pela Luísa Costa Gomes. Tem um lado muito literário. Muito poético. Belo.
Como foi a experiência de trabalhar a língua portuguesa?
E costumo trabalhar no Brasil...
Daí uma colaboração com Marisa Monte no álbum Verde, Anil, Amarelo, Cor de Rosa e Carvão?
Exatamente. Mas essa colaboração nasceu depois do trabalho do Corvo Branco... (risos). Já lá vai um tempo (risos). Escrevi toda a ópera no Brasil, e trabalhei então com alguns amigos brasileiros que me ajudaram bastante. Naturalmente reparei depois que tinha de efetuar algumas alterações por questões de pronuncia. Mas foram mínimas... Estava muito envolvido com a cultura local, lusófona. Por isso não me foi difícil concretizar o projeto.
Em The Voyage, ópera já rodada em alguns palcos, abordou também cenários marítimos e a figura de marinheiros.
E por essa razão, quando fui abordado pela Comissão dos Descobrimentos, não fiquei imediatamente entusiasmado. Tinha acabado de escrever essa outra ópera e não me sentia com vontade de abordar novamente a mesma temática. Disse-o a Mega Ferreira na altura.
O que o fez mudar de opinião?
O Mega Ferreira pediu-me para pensar novamente no assunto. E então pensei, se o Bob Wilson participar no projeto, vou em frente. Seria um desafio e sabia que nasceria uma coisa diferente. Não haveria hipótese de repetir o que tinha acabado de fazer em The Voyage. Estava então de partida para o Brasil, onde passei todo o Inverno. “Estive ficando um mês”... [diz no seu português de sotaque carioca]. Coisas que “tem” no Rio...
Fala português!
Está a regressar!... Estou aqui há poucos dias, mas começo a lembrar-me das palavras. E gosto muito da língua.
Acha-a musical?
É uma língua muito bonita. E muito musical, sim. Tenho cá vindo tocar várias vezes. Umas com o Ensemble, outras para apresentar trabalhos maiores como, por exemplo, a ópera Les Enfants Terribles no Centro Cultural de Belém. E tenho estabelecido ligações com este espaço. Mas a grande ajuda para o assegurar do desenvolvimento de todo este projeto foi mesmo a maneira como a Luisa Costa Gomes trabalhou o libreto. Sem ela não teríamos sabido por onde começar. Ela abriu a porta a uma certa literatura, cartas, poemas...
Esta é uma história que acontece em três épocas distintas: passado, presente e futuro.
O Bob e eu trabalhamos habitualmente nesses termos. E O Corvo Branco é, de resto, a segunda parte de um díptico para o qual não escrevemos a primeira. Essa primeira chamar-se-á The Palace Of Arabian Nights, que acompanha uma história desde o século IX até ao século XV, ao início do renascimento. O Corvo Branco começa precisamente aí, avança até ao presente e segue pelo futuro. Juntas vão cobrir um espaço de muitos séculos...
Como será The Palace of Arabian Nights?
Vai focar o desenvolvimento e expansão do islamismo. O Corvo Branco cobre precisamente o resto da história. Do século XV ao século XXI. Espero poder fazer, um dia, a primeira parte. Espero encontrar um teatro qualquer que acolha o projeto e o financie. Temos uma ideia geral traçada para a ópera.
Costuma estar presente nas estreias mundiais das suas óperas?
Nas estreias estou sempre presente. E tento estar o mais possível nas diversas apresentações. Mas, brevemente, Satyagraha vai ter algumas apresentações em Inglaterra e não vou poder ir... The Fall of The House of Usher esteve recentemente no Michigan e também não consegui ir. Tenho a consciência de que não é possível acompanhar tudo... Deixo as coisas seguir o seu caminho.
A pré-história de O Corvo Branco não foi fácil. Alguma vez chegou a pensar que a ópera nunca chegaria a bom porto?
Tive frequentemente essa conversa com a Luísa. Ela mostrava-se muitas vezes desencorajada e dizia que a ópera nunca seria estreada... Ao que eu respondia sempre pela positiva. Talvez a sua atitude fosse a provocação de que eu precisava para continuar a acreditar. Mas no fundo sabia que devia estar confiante. Houve muitos problemas, de facto. Começou por estar marcada para 1992, depois para 1994... Foi depois adiada para 1998. E aqui estamos. De facto, se eu me recordo bem, o Mega Ferreira sempre me disse que a ópera seria estreada nesta década. Nunca disse uma data definitiva e definiu um período. Ele não duvidada da boa conclusão do projeto. Tinha razão. Eu acredito muito nesta obra. É bela, forte. Sinto que é uma homenagem honesta a um importante período histórico e à cultura portuguesa. No final, o narrador lê os nomes dos homens que fizeram a aventura. Esse momento é poderoso. Lembra-me o monumento aos mortos no Vietname que está em Washington. Descemos ao nível das pessoas individuais. As pessoas pequenas, que são quem faz a história. A escrita da música acompanha essa ideia e torna-se muito íntima no fim... Adquire uma espécie de perfil de nostalgia objetiva. Estamos a falar de pessoas reais. Muitas delas anónimas, mas que existiram. E essa sensação é poderosa. A ópera abre num registo totalmente diferente. Grande, épica... E caminha gradualmente para esses domínios mais íntimos.
O tal registo oposto ao tom épico com que tradicionalmente era abordada a temática dos descobrimentos portugueses nos livros da escola que Luísa Costa Gomes tentou contrariar no libreto? Na senda do registo humano por trás da história?...
Precisamente. A ópera abre nesse tom. Mas não fica aí. Depois do segundo intervalo ainda há um momento épico, passado na corte do século XVI, mas depois torna-se cada vez mais intimista. No final todos os personagens estão em cena e não dizem nada. Limitam-se a olhar para as pessoas. O percurso, em vez de aumentar o tom, progressivamente, segue um rumo oposto. Este momento foi outro dos motivos pelos quais nunca desisti. As discussões, de resto, nunca acabaram. A Luísa dizia-me que eu não conhecia esta gente... Que devia ter cautela... Bom, ela conhece-os melhor que eu!
E não o assustou?
Bom, eu vim a Portugal muitas vezes para dar concertos. Fui, portanto, acompanhando a evolução lenta do projeto. Acompanhei a seleção das vozes. Houve alguns workshops e mantive sempre a confiança.
Desde o momento em que escreveu O Corvo Branco, compôs e escreveu outras óperas. Não foi frustrante ver esta a ficar para trás?
Esta tem qualidades muito especiais. Aquele sentido de nostalgia objetiva de que falei. Contrapõe a objetividade histórica com um sentido emocional, lírico. Eu não conheço assim tanto sobre Portugal, mas as ideias pareceram-me ajustar-se a este espaço. Por isso, esperei. Quando fiz as óperas da trilogia baseada em Jean Cocteau senti-me a falar sobre franceses, sobre as esteticas avant-garde dos anos 30... Cocteau, ponto final. Fiz uma outra ópera, The Marriage Between Zones Three, Four and Five, baseada num livro de Doris Lessing e com libreto da própria. Depois, novamente com o Bob Wilson, fiz Monsters of Grace, uma ópera mais experimentalista, sobre computadores. O Corvo Branco tem um sentimento próprio, diferente de todas estas óperas.
Como descreve esse sentimento português?
Sempre que olho para mapas históricos vejo um Portugal grande, espalhado pelo mundo inteiro. E agora é este canto pequeno. Lembra-me um pouco os holandeses. São igualmente um país pequeno que correu todo o mundo... Os holandeses contam uma piada. Perguntam porque têm dois ministros dos negócios estrangeiros entre eles? Porque são muito pequenos e todos os outros países são enormes. Mas a verdade é que Portugal foi o local de onde partiu toda a expansão marítima, que teve um impacte tremendo sobre todo o mundo.