domingo, dezembro 18, 2011

Sérgio Godinho: 40 anos de canções (4)


Um olhar pela história da discografia de Sérgio Godinho, caminhando através de 40 anos de canções, desde o EP de estreia em 1971 ao mais recente álbum editado já este ano. Esta é a quarta parte de um texto originalmente publicado no caderno Q., do Diário de Notícias, a 4 de Novembro deste ano.

Uma das primeiras figuras de ficção criadas pelas canções de Sérgio Godinho nasceu para um disco de José Mário Branco. Este tinha já uma música, para a qual pensou uma letra que reflectia sobre o etado do país em inícios dos anos 70. Chamou-lhe O Charlatão e, depois de gravada uma versão original no álbum Mudam-se os Tempos Mudam-se as Vontades, o próprio Sérgio Godinho regista uma leitura sua, no seu álbum de estreia. Com o tempo surgirão outras, não menos marcantes. Como a Etelvina (do álbum À Queima Roupa, de 1974), “que era da rua como outros são do campo” e que a “sua cama era um caixote sem paredes nem tampo”. Mais que uma história, muitas vezes Sérgio Godinho procura momentos narrativos onde aprofunda, sobretudo, a caracterização de personagens. Como acontece com esta Etelvina, figura dura, moldada pela vida da rua, mas nem por isso sem fragilidades (que confessa quando canta “eu vivo sozinha à noite / a dormir à beira rio / acocorada com frio / à noite, à noite”... A Etelvina será mesmo uma das mais fortes entre as figuras criadas nessa etapa da sua obra, reaparecendo mais tarde em O Porto Aqui Tão Perto e sendo, de certa forma, o modelo que inspira a Alice, no País dos Matraquilhos (do álbum Aos Amores, de 1989). Aí há uma pequena mulidão de personagens, desde uma mãe que é prostituta - “mãe fora (em que avenida?) / olhos que a perseguem, pagam, comem” - um irmão a fazer o serviço militar “puxando às armas brilhos”, uma mulher mais velha, que tem uma relação não exactamente explícita com a protagonista - “Leonor / libertada da prisão há meses / dizem que é por amor / que olha por Alice, às vezes”... E, claro, a Alice...

'Kilas O Mau da Fita', single (1981)
Fazendo um percurso através de uma vasta galeria de personagens, a obra de Sérgio Godinho revela ainda um saltimbanco que recorda o que se passou em Os Demónios de Alcácer Quibir (1976) ou a Rita (personagem do filme Kilas, o Mau da Fita, realizado por José Fonseca e Costa, interpretada no cinema por Lia Gama), cuja história Sérgio Godinho canta, falando no feminino (em concreto na Balada da Rita). Com cortante humor apresenta, em Arranja-me Um Emprego, a história de um jovem que começa de manso, pedindo trabalho, mas acaba por mostrar outra face uma vez no poder. Referindo que “greves era só / das seis e meia às sete / em frente a um cacetete” e que “primeiro de Maio / só de quinze em quinze anos”.

Mais assombrado é o retrato que encontramos em Perdida em Não Sei que Sonho (do álbum Salão de Festas, de 1984). Tudo começa por um olhar que vê alguém, “um dia à tarde / perdida em não sei que sonho” e quem depois, se reconhece a mesma figura numa notícia de jornal onde se lê “jovem drogada hoje quis / fugir a um mundo enfadonho / de seu nome Beatriz / perdida em não sei que sonho / saltou da ponte para o rio e morreu”. Terrível é também a narrativa que ouvimos em Pequenos Delírios Domésticos, que acompanhamos em patamares de progressiva loucura até ao momento em que diz “mata-ratos e cicuta / tomarás em quantidade / a hora do telejornal / era o momento ideal / tanta guerra e tanta fome / e o meu crimezinho incólume”.

Herdeira dessas histórias é agora a mulher de que se fala em A Vida Sobrasselente, que encontramos no disco de 2011. “Mulher famosa / na imprensa rosa / revisitada permanentemente”, lança a canção, aprofundando o retrato ao contar que “encontrou vida / sobresselente / nas imediações da vida verdadeira / e dessa maneira / adormeceu / pensando estar ainda acordada / que nada / fazia prever um novo pesadelo / arrumados que estavam / o fogo e o gelo”.

'Canto da Boca' (1980)
Sérgio Godinho saiu de Portugal ainda antes de fazer das canções o centro de gravidade da sua vontade de comunicar. A distância porém não o impediu de, pela canção, revisitar o Porto (onde nasceu, em 1945) em Porto Porto, onde qual faz um percurso à distância pelos espaços e vivências da cidade, vincando as experiências na primeira pessoa quando aí lembra, por exemplo, as adeptas do Salgueiros (clube cujo estádio morava perto da casa dos seus pais). Em 1981 uma continuação da história chega em O Porto Aqur Tão Perto. No mesmo álbum (ou seja, de Canto da Boca) mora também É Terça-feira, canção originalmente criada para a banda sonora de Kilas, O Mau da Fita onde se traça um olhar sobre a feira da Ladra onde; não apenas aos sábados, mas também às terças, ali surgem pessoas que vão “vender / juras falsas / amarguras / ilusões / trapos e cacos / e contradições”. Este é assim um retrato de Lisboa, cidade que é desde há longos anos a “casa” de Sérgio Godinho que a voltou a cantar em 1986 em Lisboa Que Amanhece, canção que mais recemente, por ocasião do álbum O Irmão do Meio, conheceu nova versão, em dueto com Caetano Veloso.

A música mora entre as memórias mais remotas de Sérgio Godinho. Dos discos dos pais recorda gravações de Sinatra, Glenn Miller, Moloudji, Patachou, Charles Trenet... A determinante etapa de formação de gostos que chega nos dias de juventude levou-o depois, por um lado, aos nomes da linha da frente da nova música pop/rock, dos Beatles aos Rolling Stones, sem esquecer os Kinks (38). Por outro é por essa altura que descobre João Gilberto e Tom Jobim. E não muito depois José Afonso, outra das referências maiores da sua vivência musical. Com Jacques Brel aprendeu a expressividade poética. Com Georges Brassens a “carpintaria”, termo que gosta de aplicar a uma forma como entende o trabalho, atento, de jogos de palavras e sons. Com Dylan, por seu lado, descobre novas soluções. José Mário Branco e Luís Cília são figuras que conhece em Paris, o primeiro convidando-o a trabalhar nos seus discos, retibuindo o gesto logo depois.

'Pré-Histórias' (1973)
Sérgio Godinho já tinha escrito canções antes de começar a trabalhar no seu álbum de estreia. A estreia terá acontecido ao som de O Largo do Breu, que recentemente recuperou para tocar ao vivo... Para o seu primeiro disco seguiu por caminhos com alguma familiaridade para com os de outros novos trovadores do seu tempo. Uma relação mais próxima com a música popular portuguesa começa a ganhar forma clara em Pré-Histórias, alargando horizontes num processo de progressivas conquistas que avançou nos discos seguintes. Pano Crú (em cujo alinhamento encontramos o clássico Primeiro Dia) corresponde a um momento de franca evolução no departamento das formas, a relação entre instrumentos procurando soluções mais elaboradas. Carlos Zíngaro assina um dos arranjos e, pela primeira vez, entra em cena uma secção se sopros.

Outro importante momento de viragem chega em Canto da Boca, onde pela primeira vez entra em cena João Paulo Esteves da Silva e toda uma vivência jazzística que alarga horizontes à música de Sérgio Godinho. António Emiliano (e um trabalho com novos teclados) chega em Na Vida Real (1986). Aos Amores (1989) e Tinta Permanente (1993) seguem caminhos mais “clássicos”, a grande revolução chegando em Domingo No Mundo (1997), onde participam músicos de escola pop/rock. O disco seguinte, Lupa, representa um momento significativo de mudança, criando uma nova ideia de banda (com importante presença de Nuno Rafael) que desde então serve de suporte aos discos e concertos de Sérgio Godinho, a nova linguagem aí ensaiada projectando-se depois em Ligação Directa e no novo disco recentemente editado. Se é seu ou não o Elixir da eterna juventude (como cantou no álbum Tinta Permanente), a verdade é que, 40 anos depois do seu primeiro disco, o álbum Mútuo Consentimento confirma a rara vitalidade de uma linguagem criativa e de uma voz ainda activa. Em 1993 essa incursão por terrenos vocais semelhentes aos do rap fala na verdade, e com sentido de humor sobre o o envelhecimento (“estou velho / dói-me o joelho / dói-me parte do antebraço”). E a dada a altura diz-nos a canção que “Misticismo agora à parte / envelhecer é uma arte / "arte-nova", "arte-final" / Numa luta desigual”. O romance já conta 40 anos de estrada e sem problemas de expressão... Mas não termina aqui.