Um olhar pela história da discografia de Sérgio Godinho, caminhando através de 40 anos de canções, desde o EP de estreia em 1971 ao mais recente álbum editado já este ano. Esta é a quarta parte de um texto originalmente publicado no caderno Q., do Diário de Notícias, a 4 de Novembro deste ano.
Uma das primeiras figuras de ficção criadas pelas canções de Sérgio Godinho nasceu para um disco de José Mário Branco. Este tinha já uma música, para a qual pensou uma letra que reflectia sobre o etado do país em inícios dos anos 70. Chamou-lhe O Charlatão e, depois de gravada uma versão original no álbum Mudam-se os Tempos Mudam-se as Vontades, o próprio Sérgio Godinho regista uma leitura sua, no seu álbum de estreia. Com o tempo surgirão outras, não menos marcantes. Como a Etelvina (do álbum À Queima Roupa, de 1974), “que era da rua como outros são do campo” e que a “sua cama era um caixote sem paredes nem tampo”. Mais que uma história, muitas vezes Sérgio Godinho procura momentos narrativos onde aprofunda, sobretudo, a caracterização de personagens. Como acontece com esta Etelvina, figura dura, moldada pela vida da rua, mas nem por isso sem fragilidades (que confessa quando canta “eu vivo sozinha à noite / a dormir à beira rio / acocorada com frio / à noite, à noite”... A Etelvina será mesmo uma das mais fortes entre as figuras criadas nessa etapa da sua obra, reaparecendo mais tarde em O Porto Aqui Tão Perto e sendo, de certa forma, o modelo que inspira a Alice, no País dos Matraquilhos (do álbum Aos Amores, de 1989). Aí há uma pequena mulidão de personagens, desde uma mãe que é prostituta - “mãe fora (em que avenida?) / olhos que a perseguem, pagam, comem” - um irmão a fazer o serviço militar “puxando às armas brilhos”, uma mulher mais velha, que tem uma relação não exactamente explícita com a protagonista - “Leonor / libertada da prisão há meses / dizem que é por amor / que olha por Alice, às vezes”... E, claro, a Alice...
'Kilas O Mau da Fita', single (1981) |
Mais assombrado é o retrato que encontramos em Perdida em Não Sei que Sonho (do álbum Salão de Festas, de 1984). Tudo começa por um olhar que vê alguém, “um dia à tarde / perdida em não sei que sonho” e quem depois, se reconhece a mesma figura numa notícia de jornal onde se lê “jovem drogada hoje quis / fugir a um mundo enfadonho / de seu nome Beatriz / perdida em não sei que sonho / saltou da ponte para o rio e morreu”. Terrível é também a narrativa que ouvimos em Pequenos Delírios Domésticos, que acompanhamos em patamares de progressiva loucura até ao momento em que diz “mata-ratos e cicuta / tomarás em quantidade / a hora do telejornal / era o momento ideal / tanta guerra e tanta fome / e o meu crimezinho incólume”.
Herdeira dessas histórias é agora a mulher de que se fala em A Vida Sobrasselente, que encontramos no disco de 2011. “Mulher famosa / na imprensa rosa / revisitada permanentemente”, lança a canção, aprofundando o retrato ao contar que “encontrou vida / sobresselente / nas imediações da vida verdadeira / e dessa maneira / adormeceu / pensando estar ainda acordada / que nada / fazia prever um novo pesadelo / arrumados que estavam / o fogo e o gelo”.
'Canto da Boca' (1980) |
A música mora entre as memórias mais remotas de Sérgio Godinho. Dos discos dos pais recorda gravações de Sinatra, Glenn Miller, Moloudji, Patachou, Charles Trenet... A determinante etapa de formação de gostos que chega nos dias de juventude levou-o depois, por um lado, aos nomes da linha da frente da nova música pop/rock, dos Beatles aos Rolling Stones, sem esquecer os Kinks (38). Por outro é por essa altura que descobre João Gilberto e Tom Jobim. E não muito depois José Afonso, outra das referências maiores da sua vivência musical. Com Jacques Brel aprendeu a expressividade poética. Com Georges Brassens a “carpintaria”, termo que gosta de aplicar a uma forma como entende o trabalho, atento, de jogos de palavras e sons. Com Dylan, por seu lado, descobre novas soluções. José Mário Branco e Luís Cília são figuras que conhece em Paris, o primeiro convidando-o a trabalhar nos seus discos, retibuindo o gesto logo depois.
'Pré-Histórias' (1973) |
Outro importante momento de viragem chega em Canto da Boca, onde pela primeira vez entra em cena João Paulo Esteves da Silva e toda uma vivência jazzística que alarga horizontes à música de Sérgio Godinho. António Emiliano (e um trabalho com novos teclados) chega em Na Vida Real (1986). Aos Amores (1989) e Tinta Permanente (1993) seguem caminhos mais “clássicos”, a grande revolução chegando em Domingo No Mundo (1997), onde participam músicos de escola pop/rock. O disco seguinte, Lupa, representa um momento significativo de mudança, criando uma nova ideia de banda (com importante presença de Nuno Rafael) que desde então serve de suporte aos discos e concertos de Sérgio Godinho, a nova linguagem aí ensaiada projectando-se depois em Ligação Directa e no novo disco recentemente editado. Se é seu ou não o Elixir da eterna juventude (como cantou no álbum Tinta Permanente), a verdade é que, 40 anos depois do seu primeiro disco, o álbum Mútuo Consentimento confirma a rara vitalidade de uma linguagem criativa e de uma voz ainda activa. Em 1993 essa incursão por terrenos vocais semelhentes aos do rap fala na verdade, e com sentido de humor sobre o o envelhecimento (“estou velho / dói-me o joelho / dói-me parte do antebraço”). E a dada a altura diz-nos a canção que “Misticismo agora à parte / envelhecer é uma arte / "arte-nova", "arte-final" / Numa luta desigual”. O romance já conta 40 anos de estrada e sem problemas de expressão... Mas não termina aqui.